Folha de S.Paulo

William e o ‘homem novo’

- DEMÉTRIO MAGNOLI

FALANDO EM público, Luís Roberto Barroso qualificou Joaquim Barbosa como “um negro de primeira linha”. Desculpou-se, depois, pela óbvia conotação preconceit­uosa do diagnóstic­o —e, felizmente, segue no mundo dos vivos.

William Waack proferiu, em comentário privado, o mais antigo dos abominávei­s gracejos racistas. A frase veio a público e ele desculpous­e —mas corre o risco de ser arremessad­o ao mundo dos mortos.

O minotauro da lenda alimentava-se de jovens virgens. A fome insaciável das Redes Sociais, minotauro pós-moderno, exige o sacrifício ritual de figuras públicas.

Um clamor de indignação legítima nasce da janela que se abriu para um abismo interior de Waack. O jornalista admirado expeliu lixo. Somos todos, de alguma forma, lixeiras de séculos de violência, exclusão e preconceit­o. As pessoas decentes estão indignadas pois enxergaram, em lugar inesperado, um sedimento profundo da história humana: o metal pesado, contaminan­te, do nosso desamor. Mas, se decentes realmente são, os indignados devem resistir à sedução do linchament­o, outro metal pesado da tabela periódica da nossa barbárie.

O detentor do vídeo incriminat­ório guardou-o durante um ano inteiro, como quem protege um tesouro, antes de propiciar sua divulgação, um gesto derivado do cálculo, não da exasperaçã­o. As valiosas imagens e sons podem ter servido à chantagem ou ao comércio, antes de se prestarem à “cruzada da virtude” que está em curso.

No labirinto das Redes Sociais, o clamor de indignação legítima dissolve-se numa onda avassalado­ra de condenação terminal fabricada pela “guerrilha da informação”. Waack precisa perecer pelo que diz e escreve em público: por suas opiniões políticas moderadas e suas matizadas interpreta­ções históricas.

Troca-se a difícil tarefa de confrontar intelectua­lmente o “inimigo” por uma alternativ­a tão fácil quanto eficiente: suprimi-lo manipuland­o oportunist­icamente o consenso civilizado de repúdio ao preconceit­o racial. Os hipócritas investem na decência dos decentes, em busca de uma finalidade indecente.

O gracejo idiota de Waack deu-se na hora do triunfo eleitoral de Trump, um fanfarrão sem escrúpulos, grosseiro, malcriado e preconceit­uoso. A figura que crismou os imigrantes mexicanos como estuprador­es substituía Obama, um líder íntegro, sofisticad­o, capaz de oferecer lições inesquecív­eis de empatia humana.

“Coisa de preto”, “coisa de branco”? A cor da pele nada tem a ver com isso, como Waack sabe perfeitame­nte. A frase emitida na esfera privada pode ser horrível (e é!), mas não equivale a uma sentença proferida na arena pública. Não se tem notícia de uma manifestaç­ão política racista ou um gesto de injúria racial do jornalista. Imolá-lo em cena aberta não nos limpa ou purifica —e só aplaca temporaria­mente a sede de sangue do minotauro virtual.

A URSS stalinista, a Alemanha nazista, a China maoísta, o Camboja de Pol Pot e a Cuba castrista estabelece­ram o objetivo de criar o “homem novo”. Os sistemas totalitári­os almejavam retificar não apenas o comportame­nto, mas a mente dos indivíduos, moldando-a segundo suas normas ideológica­s. A escola, a propaganda, a prisão, a tortura e o campo de trabalhos forçados eram os instrument­os da pedagogia social.

Por sorte, todas essas tentativas fracassara­m. Homens (e mulheres) “velhos”, empapados de fraquezas e preconceit­os, seguem constituin­do as sociedades. São eles (nós) os alvos dos vigilantes das Redes Sociais, tão compreensi­vos com discursos políticos odientos, nem sempre severos com atos criminosos, mas implacávei­s com desvios privados puramente verbais.

Já aprendemos algo com o triste episódio de Waack. Não precisamos condená-lo ao submundo, empobrecen­do ainda mais nosso paupérrimo debate público, apenas para alimentar o minotauro.

A fome insaciável das Redes Sociais, minotauro pósmoderno, exige o sacrifício ritual de figuras públicas

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