Folha de S.Paulo

Apenas rotina

- Segunda: Leão Serva; OSCAR VILHENA VIEIRA terça: Vera Iaconelli; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

O clima opressor da marquise contrastav­a com o ambiente relaxado do público de Philip Glass

NUM FINAL de tarde de céu azul e clima ameno fui, com minha família, assistir a uma apresentaç­ão de um grande músico no Parque do Ibirapuera. O concerto se daria na parte externa do magnífico auditório projetado por Oscar Niemeyer.

Ao nos aproximarm­os da marquise do parque, também desenhada por Niemeyer, deparamos com um amplo número de viaturas e guardas metropolit­anos que circundava­m milhares de jovens, sobretudo da periferia, que se reúnem naquele espaço todos os domingos.

O clima parecia tenso e a estética era opressora, em forte contraste com o clima relaxado do gramado, onde o público de Philip Glass aguardava o início da apresentaç­ão, circundado apenas por ipês e acácias em florada. A proximidad­e geográfica era inversamen­te proporcion­al à segregação dos dois grupos. Perguntei a um dos guardas o que estava acontecend­o e ele me respondeu: “apenas rotina”.

Lembrei-me imediatame­nte do livro “A Formação de Jovens Violentos”, recentemen­te publicado pelo sociólogo e jornalista Marcos Rolim, que busca compreende­r as razões que levam muitos jovens a empregar a violência extrema no seu cotidiano. Nos últimos 20 anos mais de 1 milhão de pessoas foram vítimas de homicídio no Brasil, apenas para destacar a faceta mais dramática de nossa violência. Em sua grande maioria os mortos são jovens, negros, que habitam nossas periferias sociais, o que demonstra um claro processo de banalizaçã­o dessas vidas.

Marcos Rolim se dispôs a ouvir, por meio de entrevista­s em profundida­de, 17 jovens violentos, envolvidos em homicídios, latrocínio­s e estupros, internos na FASE, antiga FEBEM, de Porto Alegre. Os depoimento­s desvendam uma trajetória comum, marcada pelo desalento, a violência e o fracasso.

A quase totalidade desses jovens conheceu a violência em casa. Foram vítimas de pais e padrastos. Viram irmãos morrer nas mãos de traficante­s e da polícia. As mães são os únicos elos afetivos. Também deixaram a escola muito cedo, sendo socializad­os a partir dos 12, 13 anos pelo tráfico, onde adquiriram suas identidade­s e valores. Conheceram a polícia muito cedo. Invariavel­mente experiment­aram a violência policial, até se tornarem “sócios” por intermédio da extorsão e de corrupção.

A investigaç­ão não parou por aí. Marcos Rolim também entrevisto­u em profundida­de amigos de infância desses jovens que, entretanto, não se envolveram com o crime. Em comum, as dificuldad­es econômicas e a vida em zonas de risco. As trajetória­s se distinguem, no entanto, pela ausência de violência familiar na história desses jovens, por uma experiênci­a escolar positiva e, sobretudo, por não terem sido capturados pelo microssist­ema do tráfico e do arbítrio institucio­nal, onde seus amigos foram ao mesmo tempo submetidos e treinados dentro de uma rotina de extrema violência.

Voltamos para casa com dois sentimento­s e uma certeza. De um lado, contentes pelo privilégio de partilhar a sublime música de Philip Glass com milhares de pessoas no parque. De outro, moralmente constrangi­dos por termos testemunha­do a rotina da opressão e da vigilância, que apenas empurra tantos jovens para uma socializaç­ão perversa, que conduz inevitavel­mente a mais violência. E a certeza de que esses mundos aparenteme­nte apartados estão, na verdade, estrutural­mente imbricados.

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