Cancelando a empreitada.
Foi-se o tempo em que um arauto da desgraça lembrava o papa entronado do caráter efêmero da glória. Quem hoje desfruta do status máximo vai desabar, cedo ou tarde —e a queda pode ser cruel.
Mario Cardoso, o ator que marcha para o precipício no novo romance de Fernanda Torres, sente o gosto da derrocada numa encenação do “Rei Lear”, de Shakespeare.
Era para ser a volta por cima do artista sexagenário numa carreira outrora coruscante de galã da TV (Globo, obviamente). Seria seu reencontro com a vertente dos textos consagradores do teatro, a mesma que o retirara do anonimato na juventude.
Mas a peça desmorona. O suave fracasso no Rio tornase um desastre na temporada paulistana. O crítico do jornal “metido a ‘New York Times’” desanca o espetáculo. Mario tem ataques de riso no meio das funções e acaba TRAGÉDIAS PRIVADAS É o início de uma saraivada lançada sobre o protagonista pela trama de “A Glória e seu Cortejo de Horrores”. A seguir, Mario descobrirá que a mãe está demente e que seu contador não consegue esconder da fiscalização o desfalque no orçamento dos incentivos estatais para a peça.
A solução implica dar mais alguns passos na direção do vexame. Endividado, Cardoso arranca um papel na novela bíblica do canal evangélico (obviamente, a TV Record). Será Lot, o sobrinho do patriarca Abraão que escapa da destruição de Sodoma.
Como a conta ainda não fecha, seus agentes descolam para ele uma campanha publicitária de uma marca de papel higiênico para aproveitar a visibilidade na novela.
A imagem do velho Mario Cardoso em cena de latrina será exposta ostensivamente em diversas mídias, até nos ônibus urbanos do Rio.
Fernanda Torres já castigara os personagens anciãos de “Fim”, seu primeiro romance, com epílogos de vida entre humilhantes e prosaicos.
Agora, no novo livro, chicoteia um ator uma geração mais nova. Algum sadismo estilístico? Contas a acertar com os homens hedonistas e individualistas crescidos ou transformados na desvairada zona sul carioca?
A autora não compra totalmente a hipótese da reportagem. Rejeita cultivar alvos privilegiados: “Eu castigaria qualquer um”. Talvez seja a visão antipanglossiana. “As coisas me vêm com ironia; a vida é trágica”, afirma.
Por outro lado, parece enxergar o Rio exuberante e transgressor da década de 1950 em diante com o olhar com festa na terça (14), às 20h, no Teatro Oficina (r. Jaceguai, 520, tel. 11-31062818); a autora, Zé Celso, Antonio Fagundes e Fernanda Montenegro leem trechos da obra. O valor do ingresso para o evento (R$ 40, em compreingressos. com.br ou na bilheteria do teatro a partir das 18h) inclui o livro autografado.