Folha de S.Paulo

Após uma década, Abu Dhabi abre seu Louvre

Filial do museu francês é o primeiro dos delírios do ‘soft power’ bancado pelo petrodólar, com Da Vinci e Van Gogh

- SILAS MARTÍ

O Louvre de Abu Dhabi lembra uma vila de casinhas brancas lambidas pelas ondas do mar azul-turquesa debaixo de uma imensa cúpula metálica cheia de estrelas.

Uma década depois dos primeiros rabiscos do arquiteto Jean Nouvel, a filial do maior museu do planeta na capital dos Emirados Árabes Unidos acaba de abrir as portas, desmanchan­do suspeitas de que seu destino era ser para sempre uma miragem.

Numa ilha deserta, onde outros arquitetos badalados ainda constroem uma obra mais faraônica do que a outra no último suspiro da era dos chamados “starchitec­ts”, esse disco voador desenhado pelo francês é o primeiro prédio a se tornar realidade ali.

Mas, por mais que suas frestas em forma de astros entrelaçad­os na cobertura façam chover raios de luz para dentro das galerias, pouca transparên­cia e muita polêmica rondam uma das mais espetacula­res operações culturais já realizadas no planeta.

Os contornos cintilante­s dessa pérola no golfo Pérsico seduzem os olhos de estetas e políticos ao mesmo tempo que refletem uma década de bonança e colapso financeiro, malabarism­os diplomátic­os e acusações de violações de direitos humanos.

Quando esse delírio do “soft power” começou, os Emirados Árabes se firmavam como uma potência emergen- te calcada em valiosas reservas de combustíve­is fósseis.

Seus xeques acreditava­m que podiam queimar montanhas de petrodólar­es para asfaltar uma via expressa rumo à primeira divisão do xadrez geopolític­o, deixando para trás um passado de pescadores e beduínos para ser também uma potência cultural.

Mas a crise de uma década atrás e a queda brutal no preço de seu maior tesouro fizeram secar os cofres.

Na sequência, vieram escândalos sobre o tratamento dado aos operários na ilha, que chegaram a trabalhar em situação análoga à escravidão, com passaporte­s confiscado­s e dívidas impagáveis.

Enquanto isso, longe dos canteiros de obras, na ponte aérea Paris-Abu Dhabi, negociaçõe­s corriam a todo vapor.

Em troca do nome Louvre, a maior grife do universo museológic­o, os árabes desembolsa­ram quase R$ 2 bilhões e vão pagar mais R$ 6 bilhões por 15 anos para que os franceses elaborem mostras temporária­s e emprestem obras-primas de 17 dos maiores museus do país.

Nas últimas semanas, aviões cargueiros pousam sem cessar em Abu Dhabi, atulhados de telas de Da Vinci, Manet, Monet e Van Gogh –a face mais vistosa do dinheiro.

Franceses com o ego ferido, que viram instituiçõ­es antes inabalávei­s como o Louvre e o D’Orsay se curvarem a um projeto que muitos atacam como uma distração de emergentes cafonas e autoritári­os, temem possíveis danos a acervos e —mais grave— à imagem de suas coleções.

Enquanto uma ala do mundo da arte enxerga tudo isso como derrota, políticos não perderam a oportunida­de de posar bem para a foto —o presidente francês, Emmanuel Macron, esteve na inauguraçã­o e descreveu o novo Louvre como um marco da “luta contra os discursos de ódio”.

Mas ele não lembrou que à sombra do museu, seu antecessor, Nicolas Sarkozy, negociou a construção de uma base militar ali, a primeira expansão de Paris desse tipo desde o fim de suas colônias, quando os xeques fecharam negócio com os curadores.

Enquanto políticos descrevem a operação cultural como um esforço de aproximaçã­o de Ocidente e Oriente, o governo árabe também entra na disputa por obras-primas no mercado de arte, enxergando como seus pares mais ao norte o potencial de commodity de telas e esculturas em tempos de ostentação de seus músculos diplomátic­os.

Um painel de especialis­tas a serviço do Louvre de Abu Dhabi vem fazendo o circuito jet-set das casas de leilão para arrematar mais pérolas ocidentais para o acervo, desde um Giovanni Bellini renascenti­sta a um trabalho de Mondrian de R$ 91,5 milhões.

E isso está longe do fim. No horizonte, ainda está a inauguraçã­o da filial de um Guggenheim na mesma ilha de Saadiyat, onde o museu americano de grife será vizinho do primo mais velho francês.

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Giuseppe Cacace/AFP Photo Público visita filial do Louvre em Abu Dhabi, desenhada pelo arquiteto Jean Nouvel

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