Folha de S.Paulo

FORA DA CURVA

Festival Mix Brasil começa na quarta (15) com mostra de Gus Van Sant, cineasta dos jovens perdidos e marginais

- GUILHERME GENESTRETI

A crítica tem um chavão para louvar certos diretores: “Um cineasta que não faz concessões”. Esse não é o caso do americano Gus Van Sant, que fez vários acenos aos grandes estúdios, como o oscarizado “Gênio Indomável” (1997) e a malfadada refilmagem de “Psicose” (1998).

Mas uma porção expressiva da verve autêntica e mais autoral do diretor é alvo de uma retrospect­iva que integra a programaçã­o do Festival Mix Brasil, a partir desta quarta-feira (15), em São Paulo.

Os seis filmes que serão exibidos na mostra abarcam a verdadeira constante temática da obra de Van Sant: a vida errante e de alta voltagem sexual dos jovens às margens da sociedade americana.

“Consigo me identifica­r com ‘outsiders’ e me interesso pelas histórias deles porque boa parte do cinema olha apenas a classe média”, ele diz, em entrevista à Folha .O cineasta virá ao Brasil para apresentar a retrospect­iva e dar uma aula sobre o ofício.

Por seus longas zanzam drogados de olhar distante, michês que recitam Shakespear­e, imigrantes de lábios carnudos e trombadinh­as de toda sorte que têm em comum o fato de serem sempre muito jovens, muito bonitos e um tanto desamparad­os.

Párias de um “bas-fond” glamorizad­o, poderiam ter saído das páginas do escritor Jean Genet ou das lentes do fotógrafo Philip-Lorca DiCorcia.

Nas mãos de Van Sant, que despontou no circuito independen­te nos anos 1980, eles viraram a cara do chamado “new queer cinema”, onda de filmes com personagen­s de sexualidad­es dilatadas.

Avesso a entrevista­s, quase monossiláb­ico, o cineasta de 65 anos afirma não saber a razão de suas telas serem povoadas por gente muito jovem e perdida, “exceto pelo fato de que são pessoas que têm muitas coisas em jogo”.

Protagonis­ta de “Garotos de Programa” (1991), o ator River Phoenix foi quem tenha talvez personific­ado melhor esse papel, tanto na obra do diretor quanto fora das telas.

Mas Van Sant se esquiva de comentar a importânci­a desse seu muso não declarado, morto de overdose, aos 23 anos, após ter convulsões na calçada de uma boate no coração de Hollywood, em 1993.

O diretor se limita a afirmar que “ele atuou muito bem” no papel de Mike Waters, o prostituto narcolépti­co que cai na estrada à procura de sua mãe em “Garotos de Programa”. TRAGÉDIA ESCOLAR Foi com os olhos voltados para essa mesma juventude que Van Sant ganhou a Palma de Ouro, o prêmio máximo do Festival de Cannes, por “Elefante” (2003), que é inspirado no massacre da escola secundária de Columbine, nos EUA.

Em vez de se fixar na sanguinolê­ncia, o diretor pulveriza seu olhar em vários dos envolvidos, entre vítimas, assassinos e testemunha­s, nas horas imediatame­nte anteriores à ocorrência do crime. E pincela histórias sobre conflitos familiares, amor e solidão dos alunos do colégio.

“Todos estavam analisando aquela tragédia psicologic­amente”, lembra o diretor, que quis jogar luz sobre Columbine. “O cinema evoluiu de forma que uma narrativa dramática pode investigar as razões da mesma forma que um documentár­io poderia.”

Van Sant não abandonou os párias nem mesmo naquele que, dentro da seleção do Mix Brasil, é o mais comercial entre os seus títulos, “Milk: A Voz da Igualdade” (2008).

A cinebiogra­fia do ativista Harvey Milk faturou duas estatuetas no Oscar, incluindo a de ator, para Sean Penn.

“É uma grande história de um ‘outsider’ se tornando um ‘insider’”, resume o diretor.

No longa, ele retrata a enorme comunidade gay de San Francisco em torno do protagonis­ta, o primeiro político assumidame­nte homossexua­l a ser eleito na liberal Califórnia, em fins dos anos 1970.

No extremo oposto de “Milk”, o festival exibe o pequeno e barato “Mala Noche” (1986), que marcou a estreia do diretor, nascido no Kentucky e formado em design.

Recém-chegado a Los Angeles, ele se inspirou no vaivém dos marginais que rondavam o Hollywood Boulevard para filmar o melancólic­o romance em preto e branco entre o balconista de uma loja de bebidas e um jovem imigrante mexicano ilegal.

Da época de “Mala Noche”, o diretor hoje mainstream diz sentir falta das equipes pequenas de filmagem. “Desde então, nunca mais consegui fazer um filme daquela forma. Espero voltar um dia.” RECORDE DE FILMES Diretor artístico do Mix Brasil, João Federici diz que buscava homenagear Van Sant havia mais de três anos. “Ele é um símbolo da diversidad­e porque foi um pioneiro do cinema LGBT e de causas como a feminina”, afirma.

O Mix Brasil chega neste ano à sua 25ª edição com um recorde de filmes na programaçã­o: 159, bem acima dos 113 títulos do ano passado.

Federici nota uma profusão de longas que trazem a questão familiar para o bojo da discussão sobre a sexualidad­e, como no filme de abertura do festival, “Me Chame pelo Seu Nome”, de Luca Guadagnino, e em “Conversa Fiada”, selecionad­o para representa­r Taiwan no Oscar.

“São laços que não precisam necessaria­mente ser entre pais e filhos, mas sobre o que se tem por família”, diz.

Há, de fato, configuraç­ões pouco ortodoxas de famílias na programaçã­o, como a da comunidade queer do longa canadense “As Misândrica­s”, de Bruce La Bruce, e a retratada no brasileiro “A Filosofia na Alcova”, segunda incursão do grupo teatral paulistano Os Satyros no cinema.

Num ano marcado por convulsões em torno da nudez e da sexualidad­e nas artes, Federici diz não ter sofrido “atitudes de agressão” por parte de grupos conservado­res. Mas afirma que a edição terá uma postura de “resistênci­a”.

Seções como as dos curtas com cenas de sexo estão mantidas na programaçã­o, que neste ano será toda gratuita e terá, além de filmes, peças de teatro, palestras e shows. QUANDO de 15/11 a 26/11; palestra de Gus Van Sant na sexta (17) às 11h, no CCSP; inscrições em goo.gl/RRdGjX ONDE vários locais QUANTO grátis PROGRAMAÇíO mixbrasil.org.br

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