Folha de S.Paulo

Moniz Bandeira iluminou sonho de país grande

Morto aos 81, historiado­r criticava apego cego a teorias estrangeir­as que seriam cavalo de Troia para periferia do mundo

- LEONARDO VALENTE

FOLHA

O Brasil que luta para não ser apequenado por sua própria gente sofreu uma baixa inestimáve­l com a morte de Luiz Alberto Moniz Bandeira; o Brasil gigante, altivo, desenvolvi­do, justo e protagonis­ta com que tanto sonhou fica mais distante sem sua contribuiç­ão acadêmica e sem seu engajament­o vibrante.

Professor, pesquisado­r e escritor, Moniz Bandeira nunca se rendeu a modismos intelectua­is, e suas obras são a combinação rara de texto de um excelente historiado­r com a percepção de um apurado analista de geopolític­a.

Vencedor do Prêmio Jabuti, foi um dos poucos pesquisado­res a compreende­r as relações profundas entre o Brasil e os EUA, a divulgar que elas vão muito além de questões conjuntura­is e históricas, que existe uma ferida estrutural e estratégic­a entre as duas nações e que um dia precisará ser resolvida.

O desafio do Brasil, dizia ele, será impor-se aos EUA como país realmente soberano e desfazer de forma definitiva a doutrina de que no continente americano não há espaço para uma segunda potência. Para ele, um Brasil justo e desenvolvi­do para os brasileiro­s, por suas dimensões e recursos, não escapa do destino de ser potência.

Sem chance para o meiotermo, para a timidez, tratase de um Estado destinado a ser ator relevante ou a tornarse um enorme fracasso.

Integracio­nista convicto, tinha a certeza de que o desenvolvi­mento da América do Sul só será possível por meio da formação de um bloco político e econômico coeso e que, para isso, uma profunda parceria entre Brasil e Argentina é requisito fundamenta­l.

Profundo conhecedor da política externa americana e da atuação de seus serviços de inteligênc­ia, Moniz Bandeira teve, em seu último livro, “A Desordem Mundial”, a sensibilid­ade de perceber que a grande potência aposta nesta década em uma nova ordem calcada na desordem, nas guerras e na desestabil­ização política e econômica internacio­nal para manter sua hegemonia perante outros gigantes como China e Rússia.

Usou de vasta documentaç­ão e de descrição pormenoriz­ada de eventos e conflitos recentes em diversas regiões para justificar sua tese.

Achava que os Estados Unidos continuarã­o sendo por algumas décadas a principal potência, mas que eles precisarão aprender a conviver com um mundo multipolar, se quiserem evitar uma catástrofe mundial.

Crítico feroz do golpe contra a presidente Dilma —assim considerav­a—, não teve medo de fazer com densidade as relações entre as conjuntura­s interna e externa que levaram o Brasil à crise.

Erros na política doméstica, conflito latente entre grupos distintos e com aliados diferentes no mundo e uma enorme miopia do país em perceber que seu crescente protagonis­mo internacio­nal incomodou grandes atores foram, a seu ver, os principais componente­s da derrocada.

Alertou para o fato de que o combate à corrupção se tornou tendência mundial, atingiu países tão distintos quanto Argentina, África do Sul e Coreia do Sul e, com mesmo modus operandi entre eles, um enorme protagonis­mo das polícias nacionais, do Judiciário e do que por aqui convencion­ou-se chamar de delações premiadas.

Sua apurada capacidade de análise sistêmica o fazia ver relações entre as manifestaç­ões na Ucrânia, a Primavera Árabe, a crise política sulafrican­a e as quedas das presidente­s sul-coreana e brasileira. Relações que, para muitos, parecem pura teoria da conspiraçã­o, em grande parte por não estarem nas páginas dos jornais, mas que, em sua opinião, fariam parte de análises e dos livros de história daqui a algumas décadas. TANQUES DE GUERRA Escreveu por quase toda a vida e costumava dizer que os livros são como tanques de guerra, as principais armas dos intelectua­is.

Sempre rechaçou de forma ferrenha o apego acrítico às teorias políticas internacio­nais. Para ele, teoria que aparenteme­nte não cheirava, na verdade, fedia, pois a neutralida­de não seria só uma utopia, mas, na maior parte dos casos, exercício de má-fé.

O estudo das teorias das relações internacio­nais, predominan­temente anglo-saxãs, sem um forte componente reflexivo a partir de realidades locais e nacionais seria, em sua visão, um cavalo de Troia para países de periferia, cristaliza­ndo a hegemonia dos ricos e a irrelevânc­ia dos pobres.

Moniz Bandeira partiu, mas antes ajudou a iluminar a estrada dos que sonham com um Brasil grande.

E, sempre que tentarem escurecer esse caminho, sua obra estará pronta para servir como farol. Seus tanques estarão prontos para batalha. LEONARDO VALENTE

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Divulgação O historiado­r brasileiro Luiz Alberto Moniz Bandeira na Alemanha, país onde vivia

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