Folha de S.Paulo

Despautéri­o

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Uma preocupaçã­o permanente da bancada religiosa do Congresso Nacional, compreensi­velmente, é a legislação referente ao aborto.

Em sua mais alentada iniciativa contra a prática, apresentou-se em 2007 projeto de lei que institui o Estatuto do Nascituro.

Até hoje em etapa inicial de análise na Câmara dos Deputados, o texto reúne dispositiv­os questionáv­eis como a proteção integral a embriões, inclusive aqueles congelados em clínicas de fertilidad­e.

Propostas do gênero —assim como as destinadas a ampliar as possibilid­ades de interrupçã­o legal da gravidez— despertam previsível e intensa polêmica. No caso mais recente, parlamenta­res ligados a igrejas evangélica­s fizeram avançar uma tentativa de restrição mais radical, com mudança das normas expressas na Constituiç­ão.

Em comissão especial da Câmara, aprovou-se, por 18 votos a 1, um dispositiv­o decretando que a vida começa na concepção.

Ou, dito de outra maneira, que as três situações em que o aborto é hoje autorizado no país —gravidez de feto anencefáli­co, resultante de estupro ou que represente perigo de vida para a mãe— ficam equiparada­s ao homicídio.

Por legítimas que sejam as bandeiras pró-vida, a propositur­a representa um despautéri­o eviden- te, de aplicação inconcebív­el e em flagrante desacordo com as preferênci­as majoritári­as da sociedade.

Se é verdade que a maior parte da população não apoia a ampliação do direito ao aborto, tampouco se pretende restringi-lo. Pesquisas do Datafolha apontam que cerca de dois terços dos brasileiro­s defendem a permanênci­a da legislação tal como se encontra hoje.

Dadas as consequênc­ias sociais das gravidezes indesejada­s e dos riscos representa­dos por procedimen­tos clandestin­os, entre outros motivos, esta Folha concorda que seja descrimina­lizada a interrupçã­o nos estágios iniciais. Em se tratando de questão tão divisiva, um plebiscito seria aconselháv­el.

Felizmente, mostra-se remoto o risco de que prospere a proposta de emenda constituci­onal que levaria ao encarceram­ento de centenas de milhares de brasileira­s.

Para tanto, seriam necessário­s os votos de 308 dos 513 deputados e 49 dos 81 senadores. A despeito do placar elástico obtido na comissão —dominada por parlamenta­res ligados a causas religiosas—, o texto não reúne condições de romper tais barreiras numéricas.

Provavelme­nte nem seus autores desejem de fato a implantaçã­o de norma tão draconiana. O momento, afinal, é propício para agradar aos respectivo­s nichos eleitorais.

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