Folha de S.Paulo

Entrevista que não houve

-

RIO DE JANEIRO - Por esses dias de novembro de 1967, há inacreditá­veis 50 anos, eu estava telefonand­o para Guimarães Rosa em nome da revista “Manchete”, pedindo uma entrevista. Naquela semana, Rosa finalmente tomaria posse de sua cadeira na Academia Brasileira de Letras, para a qual fora eleito por unanimidad­e em 1963. Ainda não a assumira porque, médico e cardíaco, temia não sobreviver à cerimônia. Mas agora era a hora.

Nunca entendi por que Justino Martins, diretor da “Manchete”, me confiou a tarefa. A revista estava cheia de repórteres experiente­s — dois deles os poetas Lêdo Ivo e Homero Homem, certamente amigos de Rosa. Eu tinha, se tanto, seis meses de profissão e acabara de chegar à “Manchete”. Mas foi assim. Justino convocou-me à sua mesa, deume o número do telefone de Rosa e só me recomendou que chamasse o homem de embaixador —o que Rosa também era.

Naquele mesmo dia, telefonei. O próprio Rosa atendeu e, muito amável, se desculpou, alegando que estava escrevendo seu discurso de posse e não podia parar para dar entrevista­s, mesmo que fosse para “Manchete”. Eu insisti, “Mas, embaixador...”. E ele, firme. Talvez tocado pela evidente juventude do repórter, sugeriu que eu telefonass­e no dia seguinte —quem sabe já teria terminado o discurso. Fiz isto, mas, não, ele não havia terminado. Como consolação, disse que, se eu fosse à cerimônia, me daria uma cópia do texto.

Rosa tomou posse na quinta-feira, 16. Ao fim do discurso e sob a chuva de aplausos, saiu pelo salão apertando mãos, como se levitasse. Parecia encantado, não via ninguém —só a mim cumpriment­ou duas vezes, sem saber quem eu era. E o coração resistiu bem, não o traiu.

Deixou para traí-lo três dias depois, na noite de domingo, 19, no seu apartament­o, em Copacabana. E eu me esquecera de pedir-lhe o discurso. ANTONIO DELFIM NETTO ideias.consult@uol.com.br

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil