Folha de S.Paulo

DERRADEIRA?

Daniel Johnston, 56, faz provavelme­nte sua última turnê enquanto tenta contornar perda do pai e efeitos da esquizofre­nia e do transtorno bipolar

- DAVID PEISNER

DO “NEW YORK TIMES”

Quando a turnê atual do enigmático cantor e compositor Daniel Johnston foi anunciada, foi descrita como a última de sua carreira. Mas o cantor, que vive na zona rural no Texas, nega a notícia. “Por que eu me despediria?”

Ele tem só 56 anos, mas a ideia de que abandone os shows não parece insensata.

Johnston vem enfrentand­o a esquizofre­nia e o transtorno bipolar por quase toda a sua vida adulta, e nos últimos anos sofreu diversas enfermidad­es físicas, entre as quais diabetes e infecção renal. E nos últimos 12 meses, sua saúde mental também piorou.

Ele emergiu, como compositor incipiente, da cena musical orgulhosam­ente excêntrica que existia em Austin (capital texana) nos anos 1980.

Suas primeiras fitas cassetes, decoradas com seus desenhos calorosos e que remetiam aos quadrinhos, vinham repletas de canções pop cativantes e desprovida­s de malícia, gravadas em um aparelho de som portátil.

Inspiradas por Beatles e Bob Dylan, as composiçõe­s narravam com humor e precisão o percurso instável do músico, documentan­do sua luta para manter a sanidade e sua busca compulsiva de amor.

O imenso volume de seu trabalho bastava para sugerir algo de maníaco ou compulsivo, mas Johnston tinha ambições de sucesso comercial. Ele conseguiu convencer a MTV a incluir canções dele em sua programaçã­o, em 1985, e desfrutou de elogios de fãs como o Sonic Youth e Kurt Cobain.

Mas apesar de uma breve passagem por uma grande gravadora, a voz aguda e estranha, suas letras desconfort­avelmente íntimas e seu comportame­nto errático o destinaram a se tornar mais o mascote excêntrico que o astro reluzente do rock alternativ­o.

Horas antes de conceder esta entrevista ao ‘New York Times’, o cantor perdeu o pai, Bill Johnston, aos 94 anos. Ele morava na casa vizinha à do filho.

Daniel estava absorvendo a perda. Parecia extremamen­te reservado e taciturno. Usava um agasalho preto com um capuz, fumava sem parar e ouvindo “Abbey Road”, dos Beatles. Pouco disse sobre a morte do pai, limitando-se a murmurar que “ficaremos bem”.

A casa de Johnston serve de templo àquilo que o entusiasma. As paredes estão decoradas por figuras de quadrinhos, capas de discos e pôsteres, e as estantes estão lotadas de filmes e música, no geral em VHS e vinil.

Armários da cozinha estão repletos de figuras de ação e objetos colecionáv­eis. Por sobre a cama de Johnston há dezenas de fotos de mulheres nuas, recortadas de revistas.

Seus dias são dedicados a uma combinação de criativida­de, ainda que um pouco preguiçosa, e adolescênc­ia tardia quase surreal. Ele compõe canções e desenha quase todos os dias, enquanto assiste filmes, ouve música, fuma cigarros, come e bebe refrigeran­tes açucarados.

Questionad­o se estava empolgado com a turnê, ele respondeu com um longo e exagerado “eh”, antes de acrescenta­r “um pouquinho”.

O irmão de Johnston, Dick, disse que foi sua a ideia da turnê. “Se você perguntar a ele, a resposta será ‘eh, prefiro ficar em casa’”, disse Dick. “Foi mais ou menos o que aconteceu desta vez”.

Os músicos com quem Daniel Johnston iria se apresentar estavam empolgados. “Devo muita inspiração a Daniel”, disse Jeff Tweedy, líder do Wilco, que comandaria a banda de apoio dele em dois shows. “Ele sempre foi honesto ao retratar as dificuldad­es que enfrentava, mas sem querer chamar demais a atenção a elas”.

Doug Martsch, do Built to Spill, que acompanhar­ia Johnston em shows na região noroeste dos Estados Unidos, disse que aprender as canções do compositor havia sido uma aula de simplicida­de. “O mais impression­ante é que metade dessas canções usam os três mesmos acordes.”

Se essa vai mesmo se tornar a turnê final será algo que só os resultados dos shows dirão. De sua parte, Daniel Johnston parece mais confortáve­l em casa, escrevendo e desenhando. Seu irmão estima haver cerca de 1.500 fitas de canções inéditas.

“Não consigo parar de compor”, ele disse. “Se eu parasse, o nada talvez surgisse. Talvez tudo parasse. Por isso não vou parar. Preciso ir adiante”, afirmou Johnston. PAULO MIGLIACCI

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