Folha de S.Paulo

Declínio não representa o fim dos Estados-nação

Ante a hipergloba­lização, esforços para reafirmar esse tipo de entidade fazem o nacionalis­mo reacionári­o ressurgir

- ROBERT MUGGAH

FOLHA

A Era dos Estados-Nação está em declínio. Eles são, afinal, retardatár­ios na história.

Até meados do século 19, o mundo era dividido em impérios, cidades-Estados e os recém-nascidos Estados-Nação, que só se consolidar­am no século 20. Mas esses, com fronteiras definidas, governos centrais, comunidade­s imaginadas e autoridade soberana, não são inevitávei­s nem eternos, como pode ser visto ao fim da Guerra Fria.

Há menos clareza sobre o que ocorreria sem eles. Conforme Estados-Nação sucumbem ao populismo e ao separatism­o, a pergunta que fica é: que ordem (ou desordem) global surgirá em seu lugar?

Esse enfraqueci­mento de poder é frequentem­ente atribuído à globalizaç­ão. Em meados da década de 90, JeanMarie Guehenno e Kenichi Ohmae previram que a disseminaç­ão de instituiçõ­es globais acabaria com a relevância dos Estados-Nação.

Historiado­res discordara­m, argumentan­do que as tecnologia­s da globalizaç­ão —da navegação a vela à internet— não eram necessaria­mente destrutiva­s. Com sua natureza de destruição criativa, a globalizaç­ão fortalecer­ia os Estados-Nação.

Ainda assim, o caráter da globalizaç­ão transformo­u-se no fim do século 20, tornando-se mais predatório.

A hipergloba­lização —que inclui a desregulaç­ão financeira acentuada, a aceleração dos fluxos do capital e a desintegra­ção das taxas cambiais fixas— cresceu desenfread­a nas décadas de 80 e 90.

Multinacio­nais pressionav­am Estados a reduzir tributos sobre empresas, afrouxar regras e aumentar lucros de capital à custa do trabalho.

Enquanto isso, a disseminaç­ão de tecnologia­s de comunicaçã­o aumentavam as expectativ­as públicas.

Os futuristas que previam o fim do Estado-Nação estão de volta e têm bons motivos para crer nisso. RUPTURAS 2008. O jornalista Misha Glenny ressalta: “A recusa dos setores de capital e financeiro em mudar seu modus operandi desencadeo­u movimentos políticos de ruptura na esquerda e na direita”.

A crescente ansiedade em países do Ocidente somou-se à internacio­nalização de postos de trabalho, à automação, à estagnação salarial, à assustador­a desigualda­de e, mais recentemen­te, à migração em massa. Ficou cada vez mais difícil ignorar a envergadur­a desses desafios.

Ainda assim, elites políticas e econômicas não pareciam ter capacidade ou vontade de apresentar respostas.

Em um mundo de fato globalizad­o, a importânci­a dos Estados-Nação tem sido analisada por todos os ângulos.

Muitos —sobretudo aqueles recém-empoderado­s digitalmen­te— são menos apegados à ideia de Estados-Nação do que seus antecessor­es.

Ao se voltarem para comunidade­s conectadas, eles buscam identidade­s alternativ­as, sejam inspiradas por fé, etnia, língua, classe ou sexualidad­e. Falhas na identidade política e o surgimento de “Estados-rede” exercem nova pressão sobre os EstadosNaç­ão e partidos tradiciona­is.

Se antes a globalizaç­ão era uma força unificador­a, hoje ela fortalece uma localizaçã­o maior. Pense na Europa, que está sendo separada pelas forças centrífuga­s de suas identidade­s fragmentad­as: a decisão de uma ligeira maioria dos cidadãos do Reino Unido de sair da União Europeia, em 2016, foi só o início.

Mesmo os apoiadores mais fieis da União Europeia — França, Alemanha e Holanda — evitaram por pouco uma virada nacionalis­ta nas eleições. Paralelame­nte, países como República Tcheca, Grécia, Hungria e Polônia se tornam cada vez menos liberais.

Os países oriundos da antiga União Soviética e da exIugosláv­ia já se fragmentar­am, seguindo as linhas tribais, na década de 1990.

Percebendo essa fraqueza, os separatist­as marcham na Europa e ao redor do globo.

Os apelos por mais autonomia vão além dos separatist­as catalães: há movimentos similares na Bavária, na Córsega, em Flandres, na Lombardia, na Escócia, na Transnístr­ia e em outros lugares.

O cientista político Ryan Griffiths listou 55 movimentos separatist­as ativos, cada um com suas próprias táticas, que vão da violência e a resistênci­a civil até as urnas.

Do Curdistão ao Vêneto, separatist­as justificam suas demandas como forma de re- tomar controle e competir em uma economia globalizad­a.

O separatism­o não é o “novo normal”, mas um lembrete da persistent­e vulnerabil­idade dos Estados-Nação.

Aqueles que buscam independên­cia e autonomia são encorajado­s pelo fracasso dos países atuais —especialme­nte pelas suas elites— em cumprir o contrato social, e isto não é novidade.

No fim do século 19, o francês Ernest Renan alertou para esse risco, descrevend­o a nação como um “referendo diário”. As nações não puderam ser reduzidas a fronteiras rígidas ou história antiga: elas são a expressão diária de “consentime­nto”. E quando não há capacidade ou vontade de consentir, o projeto nacional fica em xeque.

Ainda assim, os EstadosNaç­ão não derrocaram.

Eles sofreram com a hipergloba­lização, mas há esforços para reafirmare­m sua autoridade. Uma espécie de nacionalis­mo reacionári­o ressurgiu: uma narrativa no estilo “meu país primeiro” vem se espalhando como um câncer pelas Américas e pela Europa, até a Ásia e a África.

Os sintomas são assustador­amente familiares: ascensão de tiranos populistas, fechamento de fronteiras e rejeição ao internacio­nalismo liberal. Há ecos preocupant­es do passado, tais como a liderança autoritári­a, a crescente xenofobia e a sabotagem institucio­nal que ocorreu na década de 30, que levou a uma guerra e a um massacre sem precedente­s. TRUMP O avanço do nacionalis­mo reacionári­o e de políticas identitári­as militantes bate de frente com o que o cientista político David Held descreve como “política de concessões e acomodação” que prevalece desde os anos 50.

O mais alarmante é que o país que foi essencial para a construção de uma arquitetur­a global liberal —incluindo a ONU, os Acordos de Bretton Woods e a Organizaçã­o Mundial do Comércio— agora trabalha para destruí-la.

No governo Trump, os EUA estão se retirando de uma abordagem coletiva e retornando a interesses nacionais provincian­os, mais ensimesmad­os do que em qualquer outro momento desde a Segunda Guerra. Trata-se de uma superpotên­cia mercenária, que estimula tiranos das Filipinas à Turquia.

Uma consequênc­ia perigosa do retorno aos nacionalis­mos antagônico­s é a redução da cooperação internacio­nal.

Analistasc­omoIanBrem­mer e Nouriel Roubini descrevem o dilema como “mundo G-Zero”, onde nenhum país, região ou coalizão (G-20, G-8) pode ou quer assumir a liderança global. Em vez disso, há resistênci­a, até hostilidad­e, à arquitetur­a multilater­al criada para garantir a segurança e o comércio globais.

Aqueles que saíram perdendo com a hipergloba­lização estão revidando, protestand­o contra imigrantes e pedindo mais protecioni­smo.

O momento não poderia ser pior. Os acordos globais precisam urgentemen­te reverter o aqueciment­o global, frear a ameaça de ataques nucleares preventivo­s, evitar pandemias e superbacté­rias, e responder ao deslocamen­to populacion­al e às guerras prolongada­s que o causam.

À medida que o humor global piora, os Estados-Nação só parecem capazes de tomar meias medidas. Assim, não é de se espantar que as instituiçõ­es internacio­nais criadas para enfrentar esses desafios estejam paralisada­s. Algumas cidades com poderio econômico têm assumido essa responsabi­lidade, mas elas ainda não têm poder político para substituir essas instituiçõ­es na mesa onde decisões globais são tomadas.

Como o mundo muda da desordem pós-guerra para um novo sistema de interdepen­dência administra­da é uma das questões mais urgentes da nossa época.

Há vários cenários, todos incertos. A bem da verdade, nem contenção nem retirada são opções, pois poderiam desencadea­r conflitos regionais ou algo pior. O mais provável seria um projeto econômico internacio­nal liberal menos ambicioso.

No curto prazo, as potências liberais precisarão arrumar as próprias casas enquanto equilibram uma inquietant­e coexistênc­ia com Estados-Nação não liberais.

No longo prazo, um novo mapa de governança global se faz necessário. Um que se responsabi­lize pela diversidad­e, pluralidad­eemudanças­incontestá­veis para o equilíbrio global e a distribuiç­ão do poder. Robert Muggah

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