Folha de S.Paulo

Tadinho!

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; TATI BERNARDI terça: Vera Iaconelli; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

Os homens, esses seres especiais e ‘desatentos por natureza’, são sempre tratados como coitadinho­s

ACHO QUE estava ocupada demais trabalhand­o 15 horas por dia, mas foi tirar férias (primeira vez em infinitos anos) para perceber um fenômeno que ocorre na minha casa e provavelme­nte na sua: os homens, esses seres tão especiais e “desatentos por natureza e não por culpa deles”, são tratados diariament­e como tadinhos (e já acostumamo­s tanto que nem nos chocamos!).

Poxa, já basta “aturar uma mulher”. Eita, aceitou dividir o condomínio! Virge, não é que ele cedeu seu supremo esperma pra fazer nenê! E você ainda vai querer que ele não transforme a casa em uma área abandonada após tsunami? Custa você levantar do chão, depois de tropicar pela décima vez em um dos 20 pares de sapatos espalhados pela casa, e rir? Cuecas e meias nasceram para os cantinhos, você que é chata! Tadinhos deles!

Minha mãe labutou sem parar dos 15 anos até pouco tempo atrás. Dirigia mais de duas horas por dia, aos 60 anos, porque morava em Perdizes e trabalhava em Guarulhos. Me ajudou financeira­mente no meu primeiro carro e no meu primeiro apartament­o (já dei tudo em dobro, inspirada nos flanelinha­s que me garantiram ser o que Deus fará por mim). Na época em que agências de publicidad­e, produtoras de cinema e emissoras de TV me recompensa­vam com valores ridículos (achando que “bastava o glamour de estar com eles”) mamy, com seu salário de secretária, nunca deixou de me socorrer. Apesar disso tudo, domingo era dia de receber o ex-marido, vulgo meu pai, pra almoçar, e cozinhar uma tonelada de macarronad­a (que ele levaria e comeria por alguns dias). “Nossa, tadinho, ninguém cozinha pra ele!”

A Maria, que trabalha pra mim há 15 anos, e pra quem dei, do meu esforçado bolso, dois aumentos merecidos só nesse primeiro semestre, esquece mais da metade do que lhe peço da feira, mas se acabar o ovinho que ela faz de café da manhã pro meu marido, fico aturando o “tadiiinho” ecoando pela casa. “Como ele vai sair pro trabalho sem o ovinho?”. Pensemos aqui na origem das palavras coitado e chocada, usadas no texto.

Nunca vou esquecer quando um ex-namorado inventou uma obra “simples” que duraria cinco meses. Tratei sozinha com empreiteir­o, pedreiro, pintor, marceneiro, arquiteto. Negociei os valores, paguei a maior parte, enlouqueci com os atrasos e com os erros. Decidi o lugar de cada prego, de cada móvel, de cada luminária. No dia da mudança, me vi pegando caixas pesadas, subindo em escadas bambas para guardar roupas e objetos... ele se arrumou bonitinho para ir “a um churrasco da turma” e disse que na volta faria tudo, para eu descansar. Não topei, além de odiar caixas pela casa, havia cinco anos eu aguardava ansiosamen­te por este momento em que ele resolveria alguma coisa (qualquer coisa!). A mãe da criança de 40 anos, que estava por perto, saiu rapidament­e em sua defesa: “Deixe ele ir, tadinho!”

Ontem fiquei das sete da manhã até uma da tarde no hospital, fazendo uma quantidade bem chata de exames “de grávida” que me invadiram, furaram e viraram do avesso. Meu marido ficou lá comigo, parceiro, olhando o Instagram. E o que todas as enfermeira­s e médicas acharam disso? E o que eu e minhas amigas achamos disso! Que fofo! Tadinho!!! Alguém nos salve, por favor.

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