Tartaruga de Darwin evolui e ressurge em sátira social
Peça do espanhol Juan Mayorga usa trama fabular em crítica à humanidade
Personagem da trama é testemunha de grandes fatos do século 20, quase como ‘um Forrest Gump’, afirma diretora
Ao longo de seus quase 200 anos de vida, a tartaruga encontrada por Charles Darwin nas ilhas Galápagos —e que serviria de base para a teoria da evolução do cientista inglês— evoluiu. Transformouse numa senhora de formas humanas, com alguns resquícios de sua origem réptil.
A trama fabular criada pelo espanhol Juan Mayorga é inspirada em Harriet, tartaruga que viveu até 2006, quando morreu com estimados 175 anos no zoológico de Queensland, na Austrália.
Era tida como uma espécie levada por Darwin do arquipélago sul-americano em 1835 —hoje há divergências sobre a origem do animal.
Mas a ciência é só pretexto para o dramaturgo em “A Tartaruga de Darwin”, peça que ganha nova montagem brasileira nesta sexta-feira (17).
Mayorga concentra a trama em Henriqueta (Ana Cecília Costa), versão evoluída do réptil, que chega à casa de um historiador (Marcos Suchara) com uma proposta: ela, que foi testemunha de grandes fatos da história, narraria detalhes dos acontecimentos; em troca, ele a ajudaria a voltar a Galápagos, onde ela quer passar seus últimos dias.
Henriqueta viu alguns dos maiores acontecimentos da história do século 20. Estava lá na Revolução Russa, nas duas grandes guerras, na queda do Muro de Berlim. É quase “um Forrest Gump”, compara a diretora Mika Lins.
Também questiona algumas verdades históricas e dá importância aos pequenos detalhes, como o olhar de um soldado ao ler a carta da amada.
Essa “tapeçaria” de diferentes pontos de vista da história seria influência da obra do alemão Walter Benjamin, tema da tese de doutorado de Mayorga, comenta Ana Cecília. Idealizadora da montagem, a atriz já havia encenado em 2015 outra peça do dramaturgo, “A Língua em Pedaços”, que voltou ao cartaz no mês passado (leia ao lado).
Na sua estada, a tartaruga ainda narra o processo de sua evolução. Aprendeu a ler com a revista “Times”, que Darwin, entusiasta das cruzadinhas da publicação, espalhava pelo jardim de casa. Soltou a primeira palavra para socorrer uma garota durante a guerra.
Mas sua transformação sem precedentes desperta a ganância do historiador, da mulher dele (Tuna Dwek) e de um médico (Diego Machado). “De todos os animais, o homem é o mais terrível”, diz Henriqueta. “É uma peça crítica [à humanidade]”, afirma “A Língua em Pedaços”, de Mayorga, que Ana Cecília Costa estreou em 2015, voltou ao cartaz no teatro Eva Herz (av. Paulista, 2073) aos sábados, às 18h, até 9/12 (ing.: R$ 50). A atriz, dirigida por Elias Andreato, divide o palco com Joca Andreazza em texto baseado na vida da freira Teresa d’Ávila. a encenadora. “Não sobra nada, todos querem explorá-la.”
O figurino de Henriqueta reúne uma série de balagandãs de várias épocas, de um penteado anos 1920 a um tênis de corrida cor-de-rosa do século 21. “Quem viveu 200 anos viveu todos os momentos da moda”, brinca Mika.
O cenário de Cássio Brasil busca um diálogo com a luz: traz um chão e alguns móveis reluzentes, além de um fundo com negatoscópios (aparelhos para ver radiografias), aqui sobrepostos por imagens que rementem aos momentos históricos narrados.
Mas há “quebras” nos elementos do cenário, do figurino e da música, explica a diretora, como algumas canções pop que pontuam mais humor na narrativa. “Achávamos que tínhamos que rir um pouco da gente mesmo, rir da linguagem do teatro, não se levar muito a sério.” QUANDO sex. e sáb., às 21h, dom., às 18h; sessões extras em 24/11, 1º e 8/12, às 17h; até 17/12 ONDE Sesc Ipiranga, r. Bom Pastor, 822, tel. (11) 3340-2000 QUANTO R$9aR$30 CLASSIFICAÇÃO 14 anos
Nos anos 1990, os ucranianos censuraram, os ingleses acharam graça, e os portugueses os chamaram de discípulos da atriz pornô Cicciolina.
Resta saber o que os brasileiros de 2017, do ano em que a nudez na arte foi confrontada por conservadores, acharão da profusão de corpos em “A Filosofia na Alcova”.
O longa, rodado em 2015, é uma adaptação da peça homônima encenada pelo grupo Os Satyros aqui e lá fora desde 1990, e levada ao cinemas sob batuta da própria companhia teatral. Estreia nesta sexta (17) no Festival Mix Brasil, em sessão grátis.
“É como se o próprio marquês de Sade tivesse escolhido a data”, afirma Rodolfo García Vázquez, que dirige a obra com Ivam Cabral. Sade é o autor do texto original, um ensaio dramático sobre poder, submissão e libertinagem durante a França pós-1789.
Para García Vázquez, a obra escancara a “intolerância hipócrita que há no conservadorismo”. “Pense no Brasil de hoje em que um dos líderes dessa onda [Alexandre Frota] é ex-ator pornô”.
Na história, dois devassos promovem a educação sexual de uma virgem numa alcova repleta de escravos. Ali, sexo ganha contornos de violência e a nudez é mostrada sem pudores, como numa cena de orgia com 60 atores.
“Nada ali é excitante, é tudo terrível. Sade não é erótico, é pornográfico”, diz Ivam Cabral. Ele e García Vázquez dão cor brasileira à trama de Sade entre tomadas aéreas da favela de Paraisópolis e de limusines que circulam pela praça Roosevelt, onde a trupe de teatro fincou sua sede.
Aventurar-se no cinema, diz Cabral, já era plano antigo. A experiência com minisséries e telefilmes para a TV Cultura, na década passada, deu algum estofo. E a realização do longa “Hipóteses para o Amor e a Verdade” (2014), também adaptado de uma peça do grupo, foi um gatilho.
“A Filosofia na Alcova” foi rodado a jato. O galpão de uma fábrica em Santo André serviu de locação principal, e os custos da produção, entre R$ 150 mil e R$ 200 mil, vieram do caixa d’Os Satyros.
García Vázquez diz que o fato de terem escalado os mesmos atores da peça ajudou na produção. “Já havia intimidade com os papéis e também entre o elenco, o que ajudou nas cenas de nudez.”
Cabral, que é também diretor executivo da SP Escola de Teatro, pretende implantar cursos de cinema dentro da instituição, no centro da capital paulista, já a partir do começo de 2018. Ele diz já ter firmado uma parceria com a Netflix para a formação de técnicos em som e iluminação. “Cinema é o nosso grande projeto para o futuro”, diz. DIREÇÃO Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez ELENCO Henrique Mello, Bel Friósi, Stephane Sousa, Felipe Moretti PRODUÇÃO Brasil, 2017, 18 anos MIX BRASIL sexta (17), às 21h30, no CineSesc; sessão gratuita