Folha de S.Paulo

O ator Diogo Cintra, 24, contou à o que ocorreu na semana passada.

- O ator Diogo Cintra, 24, foi atacado por grupo em terminal de ônibus no centro de SP; imagem de câmera mostra ele sendo arrastado por agressores diante de seguranças

DE SÃO PAULO

Imagens captadas por câmeras de segurança mostram o momento em que o ator Diogo Cintra, 24, foge de um homem que corre com um pedaço de madeira na mão e, em seguida, é levado para fora do terminal Dom Pedro, no centro de São Paulo, na madrugada de quarta (15).

De acordo com as imagens do circuito interno obtidas pela Folha, os seguranças olham passivos às cenas de violência e não tentam impedir as agressões ao jovem.

A sequência começa justamente com o ator em fuga de um homem que corre atrás dele com um pedaço de madeira. Em seguida, o ator aparece sendo levado pelo braço do terminal para a rua.

O grupo é perseguido por dois cachorros e um rapaz que está em uma bicicleta. Alguns dos agressores usavam capuzes que escondem seus rostos, mas ao menos dois deles, aqueles que o seguravam pelos braços, podem ser identifica­dos pelas imagens.

Passageiro­s que esperavam pelos ônibus nas plataforma­s também observam toda a movimentaç­ão sem esboçar reação. Algumas mulheres chegam a se afastar do ator, quando ele tenta correr e fugir dos ataques. Em outra parte do vídeo, ele aparece cambaleant­e após as agressões, com um pé descalço, entrando em um ônibus.

As imagens condizem com o depoimento publicado pelo ator no dia seguinte em sua página em uma rede social.

Junto a fotos de seu rosto e corpo machucados, o ator publicou relato em que acusa os seguranças de racismo por terem se recusado a ajudá-lo após ele dizer que estava sendo assaltado e perseguido por três homens no centro de SP.

Em entrevista à Folha, o ator disse que voltava para casa no Capão Redondo (zona sul) após passar a noite numa festa com os colegas de elenco da peça em que atua. Ele estava a pé próximo ao terminal quando foi abordado por três homens que tentaram assaltá-lo.

Como estava perto das catracas, resolveu correr em busca de ajuda. Uma segurança disse apenas para ele correr. Em seguida, apareceram os agressores o acusando de ter tentado assaltá-los.

Ele contou que, apesar de insistir em dizer que não tinha roubado ninguém, os seguranças acreditara­m na versão dos agressores e permitiram que ele fosse arrastado para fora do terminal para ser agredido. Ele acredita que a reação foi causada pelo fato dele ser negro. Na calçada, Diogo lembra que levou golpes na cabeça e pauladas pelo corpo. Ele também foi mordido por três cachorros (leia o depoimento dele nesta página). AFASTAMENT­O Diante da repercussã­o do caso, a Secretaria Municipal de Transporte­s da gestão João Doria (PSDB) anunciou neste sábado (18) à tarde, quatro dias após a ocorrência, o afastament­o dos funcionári­os envolvidos no caso. Antes disso, a pasta afirmou apenas que estava colaborand­o com as investigaç­ões.

O SPUrbanuss, sindicato patronal do sistema de ônibus de São Paulo e responsáve­l pela gestão do terminal, disse que somente irá se pronunciar após ouvir a versão da empresa responsáve­l por contratar e gerir a equipe de atendiment­o do terminal.

Na noite deste domingo (19), o ator voltou às redes sociais para agradecer o apoio que recebeu. “Eu só gostaria de ter pelo menos um terço dessas pessoas [que me apoiaram] no terminal aquele dia”, escreveu.

DIOGO CINTRA, 24

ator vítima das agressões Folha

Era madrugada de quarta-feira (15) e eu estava voltando para casa, no Capão Redondo [periferia na zona sul de SP], depois de mais uma apresentaç­ão da peça em que atuo há cerca de um mês. Como é inspirada em textos de Charles Bukowski, a encenamos em um barkaraokê na rua Augusta para combinar com o estilo boêmio do escritor. É comum o elenco se reunir em volta do balcão depois que a plateia vai embora. Não costumo ficar, mas, como era véspera de feriado, fiquei.

Estava a pé quase chegando ao terminal Parque Dom Pedro II, para pegar um dos três ônibus até a minha casa, quando fui abordado por dois homens. Eles perguntara­m o que eu tinha para lhes dar e logo percebi que se tratava de um assalto. Como estava perto do terminal, vi que dava para correr em busca de segurança. Foi o que fiz.

Ao passar a catraca, pedi ajuda a uma vigilante, disse que estava sendo assaltado, e ela respondeu: ‘Só corre’.

Apareceram mais três homens com paus nas mãos e três cachorros. Eles disseram aos seguranças que eu tinha tentado assaltá-los. Eu insistia que não havia feito nada, mas não tinha poder de fala diante dos agressores. Eles convencera­m os funcionári­os do terminal que eu devia pagar pelo roubo, apesar de nunca o ter cometido.

Os seguranças olharam impassívei­s quando os homens me pegaram pelo braço e me levaram para fora, em direção ao rio Tamanduate­í, que passa lá do lado.

Já era começo da manhã e havia outros passageiro­s nas plataforma­s, mas ninguém me ajudou. O mais curioso é que um dos seguranças também era negro e, mesmo assim, acreditou na versão dos homens, só por causa da minha cor de pele.

Quando me vi sendo arrastado para fora do terminal, entrei em desespero e comecei a me debater. Tive certeza que eles iam me espancar até desmaiar e, depois, me jogar no rio. Tive muito medo de morrer.

Começaram as agressões. Tomei socos pelo corpo todo e pauladas na cabeça. Gritava e implorava para que parassem, mas eles continuava­m com as agressões e os xingamento­s. Ofereci que levassem meu celular, na tentativa de me livrar daquela situação, mas não adiantou. Eles roubaram minha carteira também.

Em um momento, me deixaram correr, mas soltaram os cachorros para cima de mim. Tomei diversas mordidas nas pernas, braços e pés. Os cachorros até arrancaram meu sapato. Não sei dizer quanto tempo tudo isso durou. Uma moça que fazia parte do grupo espantou os cachorros e pediu para pararem de me bater. Finalmente, me deixaram ir.

De volta ao terminal, os mesmos seguranças me abordaram e disseram que iam me levar até um posto de saúde. Me recusei a acompanhá-los e entrei no ônibus que seguiria para o terminal Pinheiros.

Eu já estava dentro do coletivo e os funcionári­os insistiam para que eu saísse e os seguisse para receber atendiment­o médico. Estava apavorado e pedi aos outros passageiro­s que fizessem alguma coisa caso fosse arrancado de lá a força.

Percebi que dois homens assentiram com a cabeça, e o ônibus finalmente partiu da plataforma.

Não sei como, mas consegui chegar até o apartament­o de um amigo que mora na avenida Brigadeiro Luís Antônio. Estava só com um pé calçado e o rosto todo ensanguent­ado. Ele me levou até um hospital, onde fui medicado e tomei injeção anti-inflamatór­ia por causa das mordidas. Depois, fomos até a delegacia para registrar o boletim de ocorrência.

Ainda não consigo andar direito por causa das mordidas que tomei no pé. Aos poucos estou me recuperand­o dos ferimentos, mas ainda estou muito assustado.

Quero voltar ao palco na próxima terça-feira e seguir com minha vida. O que mais importa é que eu saí vivo, poderia estar morto agora.

Sou ator profission­al há quatro anos graças à minha mãe, que trabalha como cuidadora de uma idosa e me ajudou a pagar os quatro anos de curso de teatro. Tive ajuda também de um expatrão, quando era estagiário no Hospital do Câncer, que arcou com as mensalidad­es depois que minha mãe ficou desemprega­da.

Já vivi outras situações de racismo, mas nunca com tanta violência. Quando vou a grandes supermerca­dos, percebo que os seguranças ficam de olho em mim.

Um dia, tive que ir a uma livraria no shopping Iguatemi retirar um livro e aconteceu a mesma coisa.

Fiquei constrangi­do e pedi a um amigo branco para me acompanhar quando tive que voltar lá para buscar outro livro.

Vou registrar boletim de ocorrência por racismo contra os seguranças do terminal. O negro foi libertado da escravidão, mas não inserido na sociedade.

Fomos jogados para as periferias. Hoje em dia temos mais direitos, o racismo é crime, mas não quero viver só de direitos.

Quero poder ir ao supermerca­do e não receber olhares mal-encarados.

Quando me vi sendo arrastado para fora do terminal, entrei em desespero e comecei a me debater. Tive certeza que eles iam me espancar até desmaiar e, depois, me jogar no rio. Tive muito medo de morrer

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Danilo Verpa/ Folhapress Funcionári­os foram afastados até o final das investigaç­ões; polícia ainda procura pistas do grupo de agressores
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Fotos Reprodução
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