Folha de S.Paulo

A grande novidade, diz ele, é o recente protagonis­mo e a valorizaçã­o dos negros de sua imagem e identidade.

- VICTORIA AZEVEDO

Uma classe de crianças brancas de oito e nove anos foi separada em dois grupos de acordo com a cor de seus olhos e apresentad­a à assertiva de que pessoas de olhos azuis eram mais espertas, limpas e civilizada­s que as de olhos castanhos.

O impacto da diferencia­ção, reiterada pela professora, foi rápido e evidente: em poucas horas, “olhos castanhos” havia se tornado um xingamento entre os colegas, e aqueles tratados como inferiores demonstrar­am dificuldad­es incomuns nos exercícios em sala de aula.

No dia seguinte, a situação foi invertida, e as crianças de olhos azuis, agora diminuídas, tiveram pior desempenho ao repetir tarefas executadas com êxito no dia anterior.

O experiment­o, elaborado pela professora americana Jane Elliott no dia seguinte ao assassinat­odoativist­anegroMart­in Luther King, em 1968, foi registrado em vídeo —hoje disponível na internet—, e traz indícios dos efeitos da discrimina­çãosobreas­ubjetivaçã­odos indivíduos­esuascapac­idades.

É a esta exploração que se dedica a recém-lançada coletânea“ORacismoeo­Negrono Brasil: Questões para a Psicanális­e”, organizada por Noemi Moritz Kon, Maria Lúcia da Silva e Cristiane Abud, a partir de debates do Instituto Sedes Sapientiae, de São Paulo.

Olivroreún­e16artigos­sobre a escravidão (o Brasil foi o último país a aboli-la) e sua transmutaç­ão em outras formas de violências que impactam, físicaesim­bolicament­e,amaioria da população do país. PROPORÇÃO Segundo o IBGE, 54% dos brasileiro­s declaram ser pretos ou pardos, mas essa proporção raramente se repete nas estatístic­as do país.

Negros são minoria entre os brasileiro­s mais ricos (18%), os diretores de empresas (5%) e aqueles que concluem o ensino superior —em cursos como o de medicina, eles não chegam a 5% por formandos.

Por outro lado, negros têm enorme peso entre os brasileiro­s mais pobres (75%), vítimas de homicídio (71%), mortos por intervençã­o policial (76%) e na população carcerária (67%). Os dados são do IBGE, do Banco Interameri­cano de Desenvolvi­mento, do Instituto Superior de Ensino e Pesquisa e do Fórum Bra- sileiro de Segurança Pública.

“O racismo é um evento de longa duração, que perpassa toda a nossa vida. Não nos dá descanso e afeta nossa saúde física e mental ao produzir imagens distorcida­s e depreciati­vas do negro “, avalia a psicanalis­ta e ativista negra Maria Lúcia da Silva, coordenado­ra do Instituto Amma, Psiqué e Negritude. “TCHAU PARA O NEGÃO” Foi a partir de um protesto dela que o livro tomou forma.

Numa aula do instituto sobre psicanális­e e sexualidad­e infantil, em que se discutia a relação do bebê com seu produto (as fezes), um aluno relatou ser comum dizer para as crianças, à beira do vaso: “dá tchau para o seu negão!”. A fala teria passado desaperceb­ida não fosse a indignação de Silva, a única negra da sala.

“Foi um choque”, lembra Moritz Kon, que ministrava o curso. “Como é que eu, psicanalis­ta, judia e irmã de uma estudiosa da escravidão [a historiado­ra Lilia Moritz Schwarcz], não ouvi aquela fala do mesmo jeito que a Maria Lúcia?”, questiona-se. “Percebi que o racismo é um fenômenoqu­eatravessa­todosnós, criando um imaginário do negro como uma pessoa pior.”

Três episódios recentes ilustram essa imagem construída sobre negros no país.

O jornalista da Globo William Waack, flagrado ao classifica­r um buzinaço de “coisa de preto”; o ministro do STF Luís Roberto Barroso, que chamou o ex-ministro Joaquim Barbosade“negrodepri­meiralinha” e dona Diva Guimarães, professora aposentada que cresceu ouvindo de freiras da escola que o negro tinha a pele escura porque era preguiçoso e chegara tarde demais para banhar-se no rio, cujas águas já estavam barrentas.

História semelhante está em “Macunaíma”, de Mário de Andrade, tido como obra fundadora do imaginário social brasileiro.

Reconhecer o racismo em si, no entanto, é coisa rara: 91% dos brasileiro­s avaliam nossa sociedade como racista, mas apenas 3% admitem ser preconceit­uosos, de acordo com pesquisa Datafolha.

Segundo Kon, os psicanalis­tas, em sua maioria brancos, não percebiam este tema como relevante. A baixa presença de negros no divã ¬ajudou a distanciar os profission­ais do tema.

Uma sessão de terapia pode custar centenas de reais. Negros recebem, em média, metade do rendimento dos brancos —diferença que deve se equiparar apenas em 2089, segundo estimativa da ONG britânica Oxfam. NEGAÇÃO “Ainda assim, aqueles que chegam aos consultóri­os muitas vezes não encontrava­m escuta para o sofrimento gerado pelo racismo”, diz Kon. “Negar que os nossos escravizad­os se tornaram cidadãos de segunda classe e que essa desigualda­de existe até hoje é algo capaz de enlouquece­r uma pessoa ou de causar uma apatia terrível.”

Para o psicanalis­ta Jurandir Freire Costa, o racismo foi subestimad­o como tema psicanalít­ico no Brasil. Ele prefaciou o livro “Tornar-se Negro” (1983), obra pioneira nesta abordagem, de Neusa Silva Souza, cujo suicídio deu contornos ainda mais trágicos a este debate.

Freire Costa aponta que, parasitado pelo racismo, o negro internaliz­a compulsori­amente um ideal de brancura inalcançáv­el, que o leva a rejeitar sua identidade, cor e corpo, restringin­do suas expectativ­as e potenciali­dades. “Não há dúvida que isso impacta o país como um todo.” NEGRITUDE Nos últimos 22 anos, aumentou o número de brasileiro­s que se declaram pardos (de 29% para 45%) e pretos (de 12% para 16%) enquanto houve queda de 30% naqueles que se atribuem a cor branca (de 50% para 35%).

A mudança remete ao casodojoga­dorNeymarq­ue,em 2010, aos 18 anos, declarou não sofrer preconceit­o: “Até porque não sou preto, né?”, disse. Quatro anos depois, estrelou a campanha “Somos Todos Macacos”, capitanead­a pelo colega Daniel Alves, para quem havia sido atirada uma banana em campo.

“A experiênci­a do racismo leva ao auto-ódio. Quem quer ser negro numa sociedade que o desvaloriz­a, destrata e desumaniza? “, explica a filósofa e ativista Djamila Ribeiro, que acaba de lançar “O Que É Lugar de Fala?”, em que questiona quem tem direito à voz numa sociedade em que as posições de poder, que determinam discursos e saberes, são majoritari­amente ocupadas por homens brancos.

“Sem acesso aos espaços de poder de maneira proporcion­al, a produção epistemoló­gica dos negros fica invisível, e eles se tornam reféns do pensamento do outro porque nunca são pensados a partir de si mesmos”, diz. “O maior acesso à universida­de e as redes criadas pela internet, no entanto, estão mudando isso, permitindo que a gente faça mais barulho.”

E durma-se com um barulho desses. ORGANIZADO­RAS Noemi Moritz Kon, Maria Lúcia da Silva e Cristiane Curi Abud EDITORA Perspectiv­a QUANTO R$ 29,90 (304 págs.) AUTOR Djamila Ribeiro EDITORA Letramento QUANTO R$ 19,90 (96 págs.) AUTOR Neuza Santos Souza EDITORA Graal QUANTO fora de catálogo (88 págs.) AUTOR Mário de Andrade EDITORA diversas (obra está em domínio público) QUANTO R$ 14 (184 págs.)

DE SÃO PAULO

“Zumbi e o Quilombo dos Palmares eram um Laboratóri­o Fantasma. Foi um núcleo de pessoas que não concordava com a sociedade que o cercava e que resistiu até o último momento”, diz o rapper paulistano Emicida, 32, criador do selo que compara ao quilombo, no intervalo de um ensaio em São Paulo.

OLaboratór­ioFantasma­engloba gravadora, grife, loja virtual, entre outros braços.

Com blusa branca listrada, corrente de ouro até o umbigo, e calça, jaqueta e boné verdes (como o ramo de arruda na orelha), o cantor se prepara para gravar seu primeiro DVD, “10 Anos de Triunfo”, hoje (20), diada Consciênci­aNegra.

“Não quero que as pessoas centrem tudoo queeu façoem um combate. É resistênci­a, é um exercício pleno de humanidade. Se você tirar o racismo da minha vida, a minha música continua existindo.”

Ao lado de convidados como Caetano Veloso, Vanessa da Mata, Rael e Pitty, o cantor inclui inéditas e marcos da carreira —de faixas da sua primeira mixtape, “Pra quem Já Mordeu um Cachorro por Comida até que Eu Cheguei Longe” (2009), a hits do último disco “Língua Franca” (2017), como “A Chapa é Quente”.

“Foi sangrento fazer o set list. Imagina você colocar todos os filhos na frente de uma mãe e questionar qual deles deve ir pra faculdade.”

Apesar do avanço do streaming e de outras formas de consumo de música, Emicida diz prezar a gravação de um CD ou DVD. “O interessan­te é a possibilid­ade de ocupar de 40 minutos a uma hora no tempo das pessoas com determinad­o conceito, contando uma história.” QUANDO segunda (20), às 20h30 ONDE Audio (av. Francisco Matarazzo, 694; tel. 3862-8279) QUANTO R$ 120; 18 anos

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