Folha de S.Paulo

CRÍTICA Biografia retrata formador de leitores

‘A Marca do Z’ mostra como Jorge Zahar ensinou gerações inteiras o que era indispensá­vel ler

- ALVARO COSTA E SILVA

FOLHA

Durante anos o editor Jorge Zahar sonhou em oferecer para o leitor brasileiro “A História da Arte”, de E. H. Gombrich, um livro que, na época em que trabalhava como livreiro, lembrava de ter vendido em inglês e espanhol.

Era uma aposta intuitiva, a qual esbarrava no alto custo de produção. O clássico do crítico austríaco, repleto de reproduçõe­s a cores, demandava uma qualidade de impressão com a qual Jorge não estava acostumado.

A decisão de correr o risco veio durante a Feira de Frankfurt de 1977, quando ele se deparou com a versão finlandesa do livro. O raciocínio —tortuoso, mas que prova a incorruptí­vel vocação de um editor— foi o seguinte:

“A Finlândia tem 5 milhões de habitantes. O Brasil, 120 milhões. De 120, se tira metade, que não consome. Tira a outra metade, que nunca pensou em ler. Corta a outra metade, que nunca viu um livro de arte. Sobram 15. Divide isso ao meio, ainda dão 7,5 milhões de ‘finlandese­s’. Tem que dar”.

Deu. “A História da Arte” de Gombrich repetiu entre nós a trajetória internacio­nal de livro de referência para estudantes, professore­s e artistas, vendendo mais de 130 mil exemplares. No meio editorial, nem sempre se consegue adivinhar o interesse dos “finlandese­s” do Brasil (ou dos “finlandese­s” do mundo inteiro), mas Jorge Zahar — morto em 1998, aos 78 anos— chegou bem perto disso.

O perfil biográfico “A Marca do Z”, de Paulo Roberto Pires, mostra como foi possível esse quase milagre: ensinar a gerações inteiras o que era indispensá­vel ler em ciências sociais e políticas, filosofia, mitologia, antropolog­ia, psicanális­e, música erudita, artes plásticas, gastronomi­a, matemática e até livros clássicos de aventura e entretenim­ento vestidos de forma mais atraente, como “O Conde de Montecrist­o” e os sete volumes com as obras completas protagoniz­adas por Sherlock Holmes.

Biografia é catálogo, acredita Pires que, ao contar a vida do editor filho de pai liba- nês e mãe francesa, trata sobretudo da casa fundada em 1957 no Rio com o nome da família: Zahar Editores. O primeiro título com o logotipo caracterís­tico —um grande Z cortado por um livro aberto— foi o “Manual de Sociologia”, de Jay Rumney e Joseph Maier, que também inaugurou a mítica coleção Biblioteca de Ciências Sociais.

Em 1985 ele começou do zero uma nova empresa, Jorge Zahar Editor, tendo como sócios os filhos Ana Cristina e Jorginho, que até hoje tocam o negócio. Ao todo são mais de 3.000 títulos publicados.

Na Europa e EUA são comuns as memórias de editor. No Brasil, não. Os mais importante­s profission­ais do ramo não deixaram testemunho­s sobre si mesmos, e muito raramente viraram alvo do interesse de biógrafos.

Para ter uma ideia da pobreza, a página da Wikipédia dedicada a Ênio Silveira tem duas linhas, uma das quais para dizer que ele foi do Partido Comunista Brasileiro. Ora, Ênio —melhor amigo de Jorge, ao lado de Paulo Francis—, à frente da Civilizaçã­o Brasileira, montou uma editora ágil e eclética, a qual, entre 1961 e 1963, chegou a publicar um livro por dia. Outros tempos, outro país.

Essa lacuna de informação está preenchida, ao menos em parte, por “A Marca do Z”. MERCADO EDITORIAL É impossível entender a modernizaç­ão do mercado editorial sem participaç­ão da Zahar. Além de garantir a qualidade e sofisticaç­ão de autores e livros, Jorge logo percebeu que devia formar uma equipe de tradutores profission­ais (Octavio Alves Velho o principal deles) e cuidar com esmero da apresentaç­ão gráfica (o designer húngaro Érico Monterosa criou toda a identidade visual da casa, incluindo o vistoso Z).

No mais, houve um incrível boca a boca —que em muitos casos é mais decisivo que a publicidad­e— entre um público jovem e intelectua­l, principalm­ente o das universida­des. Só faltava “aquele” livro para marcar, e ele veio com a publicação, em 1962, de “História da Riqueza do Homem” (mais de 300 mil exemplares vendidos).

“Foi dos livros que melhor encarnaram o espírito da editora, tanto pelo êxito gradual e consistent­e quanto pela comunhão de interesses entre editor e autor”, escreve Paulo Roberto Pires. AUTOR Paulo Roberto Pires EDITORA Zahar QUANTO R$ 59,90 (296 págs.) AVALIAÇÃO muito bom

 ?? Gabriel de Paiva -13.mar.1998/ Agência “O Globo” ?? O editor Jorge Zahar, no Rio
Gabriel de Paiva -13.mar.1998/ Agência “O Globo” O editor Jorge Zahar, no Rio

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