Folha de S.Paulo

Com abordagem conservado­ra, ‘Os Últimos Dias da Noite’ é pífio

- ANTONIO MARCOS PEREIRA

A obra de Leo Huberman mexeu até com a vida íntima do editor. “História da Riqueza do Homem” foi indicado como leitura no tradiciona­l Colégio Bennett, onde os três filhos do editor estudavam. Mas o professor que fez a indicação se viu obrigado deixar o colégio, depois do golpe de 1964, apontado como “comunista”. Jorge fez o mesmo: tirou os três filhos de lá.

Homem discreto, apreciador de uísque e sinuca, leitor de Drummond e Baudelaire, conversado­r das madrugadas, grande formador de leitores. O livro que acaba de sair lhe faz um retrato fiel.

FOLHA

Terei de fazer em breve uma viagem que me promete uma espera de mais de três horas por uma conexão. Lamento não contar com esse livro, que seria bom companheir­o para a espera típica de um aeroporto, quando sua atenção se divide entre a leitura e as chamadas de voo.

O título “Os Últimos Dias da Noite” se refere ao advento da energia elétrica, cuja distribuiç­ão e uso são objeto de disputa a um só tempo tecnológic­a, comercial e jurídica. A narrativa se cola às aventuras de Paul Cravath, advogado jovem e brilhante, envolvido na disputa entre gigantes da inovação no finalzinho do século 19.

Figuras como Thomas Edison e George Westinghou­se, com Nikola Tesla entre um e outro, disputam patentes e concepções sobre a melhor forma de lidar com a energia, e avançar o negócio de geração e disponibil­ização.

É, supostamen­te, um “romance histórico”, que quer dizer que os protagonis­tas são figuras de fato, tornadas ficcionais pelo empenho do autor em mudar o documentad­o (alterações explicadas e justificad­as em “Nota do autor” de mais de dez páginas) para que se ajustem a um certo ideal de narrativa.

À maneira de um folhetim da época, tem enredo cativante, repleto de incidentes. Cenas estonteant­es, reviravolt­as, espionagem industrial, um marionetei­ro-mor operando nos bastidores e até casamento e brindes em honra à harmonia mundi no final: é basicament­e isso.

O período —virada de uns 20 anos entre os séculos 19 e 20— e o terreno —o advento de tecnologia­s que, em chegada súbita e maciça, parecem miraculosa­s e têm impacto assombroso— é o mesmo abordado no filme de Christophe­r Nolan “O Grande Truque” (2006) e na série de Steven Soderbergh “The Knick” (2014-2015). Mas nesses dois casos (na série em particular) o tratamento da época é ousado e magistral.

Aqui, a abordagem é tão conservado­ra que o resultado é pífio. Uma pegada original passou longe, e o máximo que se pode dizer cabe numa fórmula algo canhestra: é um livro que se lê como se fosse um filme. Não é à toa: Moore é roteirista premiado. Indica seu agente literário como “parceiro criativo”. É o vício do cachimbo do autor, e aposto que um filme extraído desse livro já está no forno.

Logo nas primeiras páginas, numa descrição espetacula­r, um operário é eletrocuta­do acidentalm­ente, e talvez o manejo do incidente demonstre o que me parece sugestão, subliminar, do livro.

Aos atores ditos menores da História, restam as chamas e o desapareci­mento. E aos grandes inovadores da tecnologia (e, principalm­ente, do seu acertado comércio), reserva-se o protagonis­mo e as loas. É essa a “mensagem”? Em torno desse acontecime­nto terrível e grotesco, o narrador anota que “as histórias chegam a um final, e depois vão embora”, e me ocorreu que, se tivesse mesmo lido o livro na sala do aeroporto, poderia esquecê-lo numa cadeira, sem qualquer prejuízo. ANTONIO MARCOS PEREIRA

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil