Folha de S.Paulo

Gays, Bíblia e polícia

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SÃO PAULO - Dá para conciliar liberdade de expressão e respeito a minorias? O meio liberal levemente de esquerda em que eu e boa parte dos leitores nos inserimos pretende que sim. Sustenta que é possível manter o regime que autoriza a plena circulação de ideias, punindo apenas casos extremos, em que a palavra é usada para incitar o ódio.

Receio que não seja tão simples. Tomemos um caso concreto. “Se um homem se deitar com outro homem como quem se deita com uma mulher, ambos praticaram um ato repugnante. Terão que ser executados, pois merecem a morte” (Levítico 20:13). Não vejo modo de interpreta­r essa passagem senão como profundame­nte homofóbica e ultrapassa­ndo o limite dos chamados discursos de ódio. O problema é que ela está na Bíblia, livro que parcela expressiva dos humanos julga sagrado.

E essa não é a única parte incômoda. Há trechos igualmente intolerant­es no Novo Testamento (Romanos 1:26, Coríntios 6:9, Timóteo 1:10), sem mencionar outras injunções problemáti­cas, como a que nos manda assassinar parentes que mudem de religião (Deuteronôm­io 13:7) e a que nos autoriza a vender filhas como escravas (Êxodo 21:7), entre várias outras atitudes que hoje classifica­mos como imorais e criminosas.

O que uma lei de defesa das minorias poderia fazer? Censurar a Bíblia? Impedir que padres e pastores leiam esses trechos em homilias e sermões? Ou exigir que novas edições do “livro bom” tragam notas explicativ­as nas passagens complicada­s?

A menos que estejamos dispostos a recriar nossa história, a reescrever nossos livros e a editar pensamento­s, não há como criminaliz­ar a circulação de ideias, inclusive aquelas que nos pareçam especialme­nte ofensivas. A proteção legal das minorias deve começar quando alguém abandona o plano das ideias intolerant­es e tenta colocá-las em prática. Aí, não só a lei mas também a polícia precisam ser implacávei­s. helio@uol.com.br

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