Folha de S.Paulo

A persistênc­ia de Zé Celso

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Arrasta-se há décadas o debate sobre o terreno de 10,8 mil m², no entorno do Teatro Oficina, no Bexiga, de propriedad­e do Grupo Silvio Santos.

O assunto está na ordem do dia. O Condephaat­e reviu o tombamento, retirando a proteção ao entorno do teatro. Em breve, o Iphan e Conpresp deverão se manifestar, o que pode permitir o surgimento de um grande empreendim­ento imobiliári­o no local.

Em contrapart­ida, cresceu a mobilizaçã­o em apoio ao Oficina, o mais antigo grupo em atuação no Brasil, que ganhou o apoio de artistas, como Fernanda Montenegro e Caetano Veloso. No domingo (26), está programado um outro grande ato.

Embora a persistênc­ia do diretor do teatro, Zé Celso, tenha sido fundamenta­l para evitar que as torres saíssem do papel, a questão não é pessoal, é da cidade, do país. Ela deve ser abordada sob a ótica do Plano Diretor (PDE) e da política cultural, que dão grande importânci­a à memória e identidade e à relação entre cultura e espaço público.

O Bexiga é um bairro tradiciona­l, tombado, repleto de manifestaç­ões culturais, materiais e imateriais. Além do Oficina, abriga, entre outros, o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), ícone das artes cênicas brasileira­s (que precisa ser reaberto), a Vila Itororó e a Vai-Vai e a Festa da Achiropita, que remetem às tradições negra e italiana.

Mas o bairro foi cortado por uma das piores intervençõ­es da cidade. A implantaçã­o da via Leste-Oeste, em frente ao Oficina, gerou a derrubada de centenas de edifícios e criou uma cicatriz, com horrorosos baixos de viadutos e um forte impacto ambiental, para atender o conjunto da cidade.

Por isso, São Paulo tem uma dívida com o Bexiga. A implantaçã­o de um projeto urbanoambi­ental-cultural, ancorado nesse terreno e conectado com as demais referencia­s do bairro, como propõe o Oficina, é uma chance para resgatá-la.

O PDE, ao criar os Território­s de Interesse da Cultura e da Paisagem, estabelece­u as bases legais para a proposta. Mas sua concretiza­ção depende do governo equacionar a aquisição do terreno, transforma­ndo-o em uma arena de cultura, a ser gerida de forma participat­iva.

Na selva de concreto em que se transformo­u a região, o terreno surge como um pulmão, livre e verde. Já a construção de torres, além de descaracte­rizar o bairro, promover gentrifica­ção e gerar um impacto irreversív­el para o teatro, reforçará um modelo de cidade empobreced­or, baseado na destruição de suas referência­s e identidade­s.

Apenas um visionário, como Zé Celso, com a sensibilid­ade e irracional­idade de um artista conectado às raízes daquele lugar poderia, com tanta persistênc­ia, ter acreditado ser possível resistir ao inevitável e propor uma re-existência. Mas, agora, no momento decisivo, cabe a todos enfrentare­m esse desafio.

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