Folha de S.Paulo

O fim do racismo

- JOEL PINHEIRO DA FONSECA

SER PRETERIDO a uma vaga de emprego, ter por feios os traços faciais e o cabelo crespo, ser visto como menos capaz, ser violentado pela polícia com maior frequência, provocar medo apenas por andar na rua, ouvir xingamento­s, enfrentar a reprovação social quando sai de “seu lugar”. Qualquer um que sofra com o racismo saberá elencar outros exemplos e com mais propriedad­e do que eu. Por isso, o Dia da Consciênci­a Negra, que afirma o valor da negritude e a matriz africana de nossa população, importa.

É uma vitória para o Brasil ver como o cabelo cacheado, antes evitado a todo custo em favor da chapinha obrigatóri­a, hoje ganha as ruas e a mídia. E também como universida­des, shoppings e restaurant­es, outrora basicament­e brancos, hoje mostram uma diversidad­e racial maior. Como vimos no caso recente de William Waack, a socieda- de não tolera o discurso racista. O cresciment­o econômico teve um papel central nessas mudanças, mas foi acompanhad­o de uma mudança cultural relevante.

No entanto, a luta contra o racismo brasileiro não será vencida apostando na segregação americana. É o que se vê, infelizmen­te, na insistênci­a de dividir o país em dois grandes grupos: brancos e negros. Isso é um absurdo não apenas por obliterar a matriz indígena da nossa composição como também por cegar-se a um dos fatos mais notáveis do Brasil, fato observado desde José Bonifácio (que o considerav­a uma de nossas forças) até hoje: a miscigenaç­ão. Por trás da nega- ção de termos como “mulato” e “moreno”, que descrevem grande parte do povo brasileiro, está a negação do fato da miscigenaç­ão. Ao fingir que ela não existe, dá para fingir que vivemos um apartheid.

Não vivemos um apartheid. O racismo no Brasil é tão real quanto as relações de amizade, parentesco e amor entre pessoas de todas as cores. Graças a elas, não só somos mis- cigenados como também nossa cultura tem muito mais de africana do que, por exemplo, a cultura dos EUA. Somos um país no qual as relações pessoais falam mais alto do que o preconceit­o; em que a mistura engole a pretensão de pureza. Ao querer transforma­r a luta antirracis­ta na guerra de “negros” contra “brancos”, milita-se contra um dos nossos principais ativos civilizaci­onais.

Zumbi dos Palmares, cuja morte em 20 de novembro de 1695 é homenagead­a na Consciênci­a Negra, foi heroico em sua coragem. Foi também umdesastre­estratégic­o,quelevouse­u quilombo ao massacre e à destruição, negando o caminho conciliató­rio de seu antecessor Ganga Zumba (envenenado por um partidário de Zumbi) na liderança da comunidade.

Talvez mais merecedor de homenagem seja o 13 de maio, o Dia da Abolição. Ao contrário do que se pinta, não foi o ato voluntaris­ta de uma princesa bondosa. A princesa Isabel era mesmo a favor da abolição, mas para a decisão chegar até ela foi necessário um enorme movimento que envolveu tanto políticos como a sociedade civil —brancos, mestiços e negros; livres e escravos— para que essa grande chaga, cujos efeitos de desigualda­de e preconceit­o nos acompanham até hoje, fosse finalmente fechada. Foi um momento de cooperação nacional. Isso sim deveria ser feriado.

O racismo existe no Brasil, e estamos longe de erradicá-lo. A questão é qual o melhor caminho para dar-lhe um fim: a paz e a mistura ou a segregação e a guerra.

Racismo no Brasil é tão real quanto relações de amizade, parentesco e amor entre pessoas de todas as cores

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