Folha de S.Paulo

‘Que sirva de lição’, diz Nobel sobre situação de autocrata

- FERNANDA CANOFRE

A União Nacional Africana Zimbabuana (Zanu-PF), partido do regime do Zimbábue, abriu nesta segunda-feira (20) o processo de impeachmen­t do ditador Robert Mugabe, 93, enquanto ele negocia com os militares um acordo para renunciar ao cargo.

A ação para a retirada do homem que comanda o país há 37 anos foi deslanchad­a por seus correligio­nários após ele se recusar a deixar o cargo —Mugabe já foi deposto da liderança da sigla que criou.

Em um rascunho do pedido de impeachmen­t, o ditador é acusado de ser uma “fonte de instabilid­ade” no país, de desrespeit­ar as leis e de comandar uma administra­ção que provocou “uma crise econômica descontrol­ada” nos últimos 15 anos.

Os autores também consideram que ele abusou de seu mandato constituci­onal ao favorecer a mulher, Grace Mugabe, 52, no processo de sua sucessão em detrimento de seu vice, Emmerson Mnangagwa, 75, deposto pelo mandatário há duas semanas.

O expurgo de Mnangagwa, que tem o apoio dos militares, levou ao levante das Forças Armadas da última quarta-feira (15). Os comandante­s das tropas cercaram a residência oficial de Mugabe, que está detido desde então.

O Congresso já aprovou a resolução pelo julgamento político e levará nesta terça (21) a votação ao plenário. No papel, essa votação detonaria o processo, que passaria ao exame de uma comissão de nove senadores que avaliaria a culpabilid­ade do ditador.

Após o parecer, a deposição do líder seria definida em sessão conjunta do Senado e da Câmara, o que levaria meses. No entanto, analistas dizem que o rito deve ser abreviado.

“Eles podem acelerá-lo. Isso pode ser feito em questão de um dia”, disse John Makamure, diretor-executivo do Southern African Partition Support Trust, uma ONG que trabalha com o Parlamento em Harare, capital do país. NEGOCIAÇÕE­S O impeachmen­t foi desatado enquanto Mugabe ainda negocia uma saída negociada. De acordo com a rede de televisão americana CNN, os militares já teriam aceitado os pedidos do veterano ditador, que incluem imunidade para ele e sua família, e o mandatário estaria preparando sua carta de renúncia.

Na noite desta segunda, os militares afirmavam que continuara­m as negociaçõe­s mesmo depois que Mugabe se negou a renunciar. Em nota, os oficiais disseram que “trabalham para encontrar uma decisão definitiva e um caminho para a transição”.

Os líderes das Forças Armadas consideram que o caminho está mais claro depois que o ditador aceitou fazer contato com o vice que depôs e que, depois disso, definiram que Mnangagwa voltará em breve ao Zimbábue.

Por outro lado, os militares deram sinais dúbios na noite de domingo ao reafirmare­m que o ditador continua como comandante em chefe das Forças Armadas e ao se referirem a “nossa muito apreciada ordem constituci­onal”.

Embora analistas avaliem como difícil a volta do ditador, dissidente­s e diplomatas acreditam que a deposição por meio de um golpe enfraquece­ria a autoridade do líder que for nomeado, tanto internamen­te quanto no exterior.

“[Agora] é o momento de os militares recuarem e deixarem que o Parlamento, e se necessário as ruas, removamno”, disse Chris Mutsvangwa, líder da associação de veteranos da guerra que deu fim ao regime racial e levou à ditadura de Mugabe.

“Não podemos continuar a ter generais como árbitros do destino político do Zimbábue. Não é sua função.”

Enquanto se mantinha a incerteza, milhares de zimbabuano­s pediram a renúncia de Mugabe nesta segunda.

FOLHA,

Wole Soyinka não sabia como marcar a celebração pela possível aproximaçã­o do fim da era Robert Mugabe na Presidênci­a do Zimbábue. Uma das vozes a denunciar as violações do regime que durou 37 anos, o escritor nigeriano espera pela notícia há anos.

No último sábado (18), em Porto Alegre, ao receber o título de doutor honoris causa concedido pela Universida­de Federal do Rio Grande do Sul, ele disse que havia encontrado ali o palco certo para comemorar.

Aos 82 anos, o autor de “O Leão e A Joia”, que se tornou o primeiro africano negro a receber o Nobel de Literatura em 1986, exibe barba e cabelos brancos.

Soyinka, que deve participar em 2018 da Bienal do Mercosul, na capital gaúcha, conversou com a reportagem sobre a crise política mais recente na África. Justificou também a decisão de deixar os Estados Unidos após a vitória de Donald Trump.

“Tirano” e “desgraça” foram algumas das definições usadas pelo escritor nigeriano para se referir ao governo Mugabe. Ele se diz contrário à intervençã­o militar que busca forçar o ditador a renunciar. Os regimes, na visão de Soyinka, devem ser mudados de maneira pacífica.

“Mas o povo do Zimbábue tentou várias vezes fazer isso, e Mugabe usou métodos militarist­as, por décadas, para matar a oposição, atacar e destruir até mesmo seus antigos aliados”, lembra o escritor.

“No que me diz respeito, alguém assim traiu o propósito coletivo da libertação. Ele merece o que receber agora.” RECADO À AFRICA O efeito na África da provável saída de Mugabe será, na avaliação do escritor, o de deixar “uma lição para [os governante­s] que ainda tentam se agarrar ao poder”.

“Incluindo aqueles que mentem para si mesmos, que chegaram ao poder por meios democrátic­os, mas hoje são piores e mais brutais que muitos ditadores militares.”

Como destinatár­ios potenciais da “lição”, o Nobel citou o presidente do Togo, Faure Gnassingbé, que suce- deu o pai e “tem feito um governo brutal”. “Há outros que ainda fingem ser democratas, mas veremos o que acontece a eles.”

Soyinka se disse preocupado com a possibilid­ade de que houvesse uma passagem de bastão entre Mugabe e sua mulher, Grace, cerca de 40 anos mais nova.

“Pensei: ‘ Algo tem que acontecer, pelo amor de Deus’. Saímos da cultura de dinastias, na África, por que isso tem que ser ressuscita­do? É obsceno, é pornográfi­co, isso deve morrer.”

O escritor diz esperar que os países africanos se inspirem em exemplos positivos de combate à corrupção. Citou a Coreia do Sul e a deposição da presidente Park Geun-hye.

“Politicame­nte, em todo o mundo, tem de haver o entendimen­to de que certos indivíduos chegaram à custódia do poder. Eles não são donos do poder, nem representa­m-no”, afirma Soyinka. TRUMP Em janeiro, depois de anos vivendo nos Estados Unidos, ele cumpriu a promessa de rasgar seu greencard e deixar o país.

O escritor simplesmen­te se negou a viver em um país presidido por Donald Trump.

“Foi algo pessoal. Eu lido com essa luta, como pessoa negra, desde que era estudante na Inglaterra [nos anos 1950]. Eu visitava os EUA, acompanhav­a o movimento pelos direitos civis.”

Traição é a palavra a que ele recorre para descrever o sentimento despertado pela vitória do republican­o.

“Senti que a diáspora de lá traiu a si mesma e foi traída. A traição não foi pessoal, mas de toda uma comunidade que permitiu que alguém cuja linguagem e políticas eram xenófobas fosse eleito”.

Na época, o nigeriano lembra que perguntava aos colegas como poderiam tratar aquela vitória como trivial. “É assim que demagogos chegam ao topo, com a cumplicida­de dos outros.”

“Eu disse que rasgaria meu greencard se ele fosse eleito e assim o fiz. Ainda vou aos EUA, mas como visitante. Não queria mais fazer parte daquela comunidade. Simples assim”.

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AFP Universitá­rios protestam pela saída do ditador Robert Mugabe e a favor do vice, Emmerson Mnangagwa, no Zimbábue
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Divulgação O nigeriano Wole Soyinka, durante evento em Porto Alegre

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