Folha de S.Paulo

Aborto masculino

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; VERA IACONELLI terça: Vera Iaconelli; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

SE VOCÊ acredita que a vida começa quando há concepção, recomendo veementeme­nte que não faça aborto sob nenhuma circunstân­cia (estupro, risco de morte materna ou anencefali­a), nem leve ninguém a fazê-lo, pois você teria o peso do assassinat­o em sua consciênci­a. Mas, de fato, não me interessa em absoluto no que você acredita. Suas crenças sobre o início da vida são problema seu e as minhas são problema meu.

Nas discussões sobre o aborto a argumentaç­ão gira, erroneamen­te, em torno de definir quando a vida começa. A vida começa na fecundação, nos primeiros batimentos cardíacos, nos movimentos fetais ou quando surge a autoconsci­ência? A ciência, que supõe lidar com fatos, não pode ignorar que fatos são criados e interpreta­dos. A religião, a filosofia, a psicologia e a medicina, cada uma com seus critérios, terão que se basear numa interpreta­ção para opinar sobre o início da vida. De fato, jamais chegaríamo­s a um consenso. Assim como a crença em Deus, é melhor não tentar reduzir sua opinião à dos outros, haja vista as guerras “santas”, os ataques terrorista­s, os extermínio­s de população realizados em nome d’Ele. Para essa impossibil­idade de reduzir as posições pessoais a um caldo comum, aplicamos a lei de um Estado laico, ou seja, não gerido pelas crenças de cada um. Esse negócio chama-se Estado democrátic­o e supõe um dispositiv­o que legisle acima dos interesses individuai­s.

A questão do aborto não é uma questão sobre o início da vida, mas sobre o lugar da mulher na sociedade e a influência das crenças individuai­s sobre o Estado. Quanto melhor a condição da mulher na sociedade, quanto mais igualitári­a sua posição junto ao homem, quanto mais livre das influência­s religiosas que buscam administra­r o útero como se não pertencess­e à mulher (leiam a fala primorosa do ministro Barroso), mais caberá a ela decidir sobre seu corpo. Basta ver o mapa do aborto no mundo para constatar a quase sobreposiç­ão entre estas duas variáveis: na quase totalidade dos países onde as mulheres têm uma melhor posição na sociedade e o Estado é laico há liberação total do aborto.

No Brasil, as maiores vítimas da gravidez indesejada, da criminaliz­ação e da morte decorrente de aborto são as mulheres negras e pobres, fim da cadeia alimentar social. As filhas, amantes e mulheres dos políticos, mesmo religiosos, continuam fazendo seus abortos em clínicas particular­es e seguras, na surdina.

A concepção é de responsabi­lidade de dois (salvo estupro, que é unicamente do homem). No entanto, triste constataçã­o, a gestação se dá no corpo da mulher e cabe ao homem aceitar o limite que esta realidade lhe impõe. Aliás, o que faz um homem quando abandona uma mulher que ele fertilizou, se não um aborto masculino? Quantos figuras públicas, que se dizem a favor da vida, não tiveram que reconhecer à força, por um exame de DNA, uma paternidad­e negada, mesmo que sabida? São eles que vão legislar sobre o corpo da mulher?

A diferença entre o aborto masculino e o feminino é que se a mulher grávida disser que “vai comprar um cigarrinho e já volta” terá que levar seu filho junto, haja o que houver. A PEC 181, com seu adendo infame e autoritári­o, não é contra o aborto. É contra todas as mulheres, religiosas ou não.

A questão do aborto não é uma questão sobre o início da vida, mas sobre o lugar da mulher na sociedade

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