Folha de S.Paulo

Sentidos nada passivos

- SUZANA HERCULANO-HOUZEL

OS SENTIDOS têm fama de serem passivos, meros sensores permanente­mente expostos aos acontecime­ntos —mas isso passa longe da verdade. Boa parte do que o cérebro faz é controlar a aquisição de sinais do corpo, permanente­mente movendo, ajustando, ligando e até desligando “antenas” variadas.

Olhos fechados impedem a visão, e se não se moverem sempre que abertos, ficam cegos, com uma imagem “queimada” na retina até que os fotorrecep­tores recuperem seus pigmentos (razão pela qual não se deve olhar diretament­e para faróis de carro vindo em sua direção). Nossas orelhas não se movem como as de outros animais, mas temos o mesmo sistema elaborado de amplifica- ção seletiva do que interessa ouvir, conforme o cérebro aumenta ou diminui a sensibilid­ade de partes diferentes da orelha interna. Tato seletivo? Músculos servem para isso, oras: só encostamos no que o cérebro escolhe e se algo nos toca inadvertid­amente, isso é imediatame­nte notícia.

Cheiros, contudo, nos rodeiam o tempo todo. Ainda assim, não os sentimos o tempo todo (já notou?). E nem é preciso tapar o nariz: basta prender a respiração, truque ra- pidamente aprendido como estratégia em situações fedorentas.

Cerca de cem anos atrás, o inglês Lord Adrian, um dos primeiros neurofisio­logistas, notou que só havia atividade elétrica detectável no bulbo olfatório dos animais em seu la- boratório quando passava ar por dentro do nariz —como se o olfato fosse ligado e desligado o tempo todo. Por décadas, a bizarrice escapou à investigaç­ão, enquanto cientistas estavam mais interessad­os em entender como milhares de receptores nos tornam capazes de identifica­r e distinguir cheiros. Talvez a passagem de ar apenas trouxesse cheiros.

Mas não: nos últimos anos, a curiosidad­e humana sobre o corpo, aliada à investigaç­ão científica nos pa- íses que acham que isso vale a pena, como a China, descobriu que os receptores olfatórios não são só sensores químicos. São sensores duplos, detectores de fluxo de ar e de substância­s químicas, que somente ligam na presença de ambos —como uma câmera ativada por movimento.

Mover e ajustar tantas antenas pode ser feito consciente­mente, o que é ótimo —mas dá trabalho. Ainda bem que o cérebro sabe perfeitame­nte fazer isso tudo de modo automático, enquanto a gente cuida de coisas mais interessan­tes do que quando olhar, tocar e cheirar.

Receptores olfatórios ligam e desligam de acordo com detecção de fluxo de ar e de substância­s químicas

Suzana Herculano-Houzel suzanahh@gmail.com

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