Folha de S.Paulo

Traumas conectaram Krajcberg à ecologia

Artista perdeu a família no Holocausto e combateu Hitler em Berlim antes de vir ao Brasil, onde fez carreira na arte

- MARIO CESAR CARVALHO

Passagem pelo Paraná, onde floresta e índios deram lugar a fábrica de papel, forjou a verve ambiental em sua obra

Na história das atrocidade­s da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a tomada de Berlim pelo Exército Vermelho é um dos capítulos mais violentos e infames. Hitler sabia que já havia perdido a guerra, mandou destruir tudo que pudesse ser usado como prova contra os nazistas e colocou atiradores de elite no topo dos prédios para alvejar os invasores.

O polonês Frans Krajcberg (1921-2017), que ingressara no Exército de seu país em 1939, era um desses invasores que escapou da pontaria dos atiradores de Berlim, num dos episódios mais traumático­s de sua vida.

Ganhoualgu­masmedalha­s por bravura, em número que variava conforme a memória do artista oscilava. Uma delas teria sido entregue a ele pelo próprio Josef Stálin (18781953), e Krajcberg contava que havia sido roubada num dos assaltos a sua casa, em Nova Viçosa, no sul da Bahia.

Há uma névoa de imprecisão sobre o que aconteceu com as outras medalhas. Krajcberg ora dizia ter atirado as honrarias num rio em Berlim, ora falava que as tinha jogado na fronteira da Alemanha com a Tchecoslov­áquia.

O episódio é impreciso e nebuloso porque Krajcberg não gostava de lembrar da Segunda Guerra, sobretudo conforme a idade ia avançando. Tentei entrevistá-lo sobre a tomada de Berlim, mas ele educadamen­te empurrava a conversa para frente.

Traumas não faltaram na vida de Krajcberg, e eles parecem ser essenciais para entender o tipo de arte que ele fazia, principalm­ente pelo viés político que adotou.

Nascido na Polônia numa família de comerciant­es pobres, Krajcberg teve a família exterminad­a num campo de concentraç­ão. Numa das batalhas das quais participou, acabou soterrado. Foi salvo por um amigo.

Sua mãe, dirigente do Partido Comunista, foi enforcada quando os nazistas invadiram o território polonês.

Veio para o Brasil em 1948, depois de estudar arte em Stuttgart e em Paris, e aqui enfrentou outro trauma.

Por recomendaç­ão de Lasar Segall, seu amigo, foi trabalhar na Klabin, no norte do Paraná, numa fábrica de papel, quatro anos depois de sua chegada. Ali viu a destruição das florestas de araucárias e a expulsão dos índios de suas terras.

Sobre esses anos, ele falava abertament­e:

“Desde que eu deixei Stuttgart, eu era um homem per- dido. Odiava os homens. Fugia deles. Levei anos para entrar na casa de alguém. Eu me isolava completame­nte. Eu bebia, fumava muito. A natureza soube me dar a força e me deu o prazer de sentir, pensar e trabalhar. Sobreviver. Eu andava na floresta e descobria um mundo desconheci­do. Descobria a vida. Mas o sol era sempre vermelho e o céu nunca azul. Tinha fumaça dia e noite. As árvo- res eram como os homens calcinados durante a guerra. Não aguentei. Troquei minha casa por um bilhete de avião para o Rio.”

Em 1957, um ano depois de ter-se mudado para o Rio, Krajcberg expôs na Bienal telas abstratas que remetiam às samambaias que via no norte do Paraná.

Curiosamen­te, não foi no Brasil que ele começou a usar a natureza diretament­e nas obras, em telas feitas de terra e pedra, mas em Ibiza, na Espanha, para onde começou a viajar em 1958.

O grande crítico francês Pierre Restany (1930-2003) diz que a partir desses trabalhos a natureza passou a ser seu estúdio, seu objeto de estudo e seu meio de expressão.

Não há nem um pingo de ingenuidad­e nessas obras, como ocorre com muitos artistas ditos ecológicos.

Krajcberg evocou tudo que aprendeu com o artista alemão Willi Baumeister (18891955), seu mestre em Stuttgart, apesar de ter rejeitado o concretism­o, por considerál­o excessivam­ente mental.

Como os novos realistas com quem sentia afinidade automática no começo dos anos 1960, passou a se apropriar de coisas do mundo.

Usou também elementos da op-art e da arte cinética com inventivid­ade única, como se viu nas obras espantosas apresentad­as na última Bienal, em 2016.

Não deixa de ser um acinte à sua memória e aos traumas pelos quais ele passou que uma socialite como Bia Dória, mulher do prefeito João Doria (PSDB), copie descaradam­ente seu trabalho.

 ?? Leo Eloy/Fundação Bienal de São Paulo ?? Esculturas de madeira queimada e pigmentos naturais na obra “Sem Título (Bailarinas)”, exibida na 32ª Bienal, em 2016
Leo Eloy/Fundação Bienal de São Paulo Esculturas de madeira queimada e pigmentos naturais na obra “Sem Título (Bailarinas)”, exibida na 32ª Bienal, em 2016

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