Folha de S.Paulo

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- MARIANA ZYLBERKAN

DE SÃO PAULO

O andar sobre o salto 15 faz parte do travesti que o ator Diogo Cintra, 24, interpreta na peça O Inferno do Velho Buk, em cartaz em São Paulo.

O adereço chegou a ser uma dúvida entre os colegas de elenco, já que o pé do ator ainda estava machucado devido às mordidas dos cachorros que o atacaram na calçada do terminal parque Dom Pedro 2º, na região central, na madrugada de quarta (15).

“Vou usar sim, não está doendo mais”, afirmou Diogo, antes de calçar o par, em sua primeira atuação depois de ser vítima de agressões —e de acusar de racismo os vigias do terminal de ônibus que se recusaram a ajudá-lo.

A volta aos palcos na noite desta terça (21) ocorreu quase uma semana após ele ter sido espancado por um grupo de homens que o acusaram de ter tentado assaltá-los.

Diogo tinha saído justamente do bar na rua Augusta onde a peça de teatro é encenada e voltava para casa no Capão Redondo (zona sul) quando sofreu os ataques.

Ao ser abordado pelo grupo, que pediu seu celular, ele correu em direção ao terminal em busca de ajuda. Ao dizer a uma vigilante que estava sendo assaltado, apenas ouviu que deveria correr.

Imagens gravadas por câmeras de segurança mostram o momento em que ele é perseguido dentro do terminal por um homem com um pedaço de pau na mão e depois pede ajuda aos agentes.

Para o ator, os funcionári­os cometeram crime de injúria racial por terem se negado a ajudá-lo e acreditado na versão dos agressores —de que ele era um ladrão.

Nas imagens, os agentes o amparam com uma cadeira de rodas somente após ele voltar desorienta­do para o terminal, depois de sofrer as agressões —o grupo estava ainda com três cachorros, que também o atacaram.

O ator lembra que entrou no ônibus com destino ao terminal Pinheiros (zona oeste) e implorou aos outros passageiro­s que fizessem alguma coisa caso os agentes o obrigassem a descer do coletivo.

O caso ganhou repercussã­o após o ator publicar um depoimento em rede social. GUERREIRO Na plateia, não havia nenhum amigo ou parente de Diogo. Cerca de dez espectador­es ocupavam as cadeiras de madeira enfileirad­as a poucos metros do espaço onde os atores atuavam.

A peça encenada há alguns meses é inspirada na obra de Charles Bukowski, conhecida por seu conteúdo transgress­or. Os atores se revezam em pequenas esquetes de contos narrados pelo ator que interpreta o escritor e que fica o tempo todo em cena posicionad­o em cima de um tablado digitando com máquina de escrever. As cenas retratam, na maioria, casais em crise e em ambiente boêmio.

Além de um travesti, Diogo interpreta um boxeador.

O reencontro de Diogo com os colegas de elenco foi breve antes da preparação para a apresentaç­ão. Como a peça é montada em um bar, são os atores que montam o cenário a cada encenação.

Antes de receber o público, os seis atores fazem uma espécie de ritual. Formam uma roda em que se abraçam e entoam uma espécie de oração.

Na noite desta terça, o momento foi diferente. Os atores dedicaram a apresentaç­ão a Diogo. “Essa sessão é especial porque é dedicada ao nosso amigo Di, nosso guerreiro.

DIOGO CINTRA

ator negro, vítima de agressões na madrugada de quarta-feira (15) e que teve ajuda negada por agentes Cada um de nós morreu um pouco na semana passada. Nós precisamos de você”, afirmou um colega. Em seguida, cada um repetiu a frase: “Eu preciso de você”.

A menção à agressão surgiu novamente no fim da peça, quando o elenco se reuniu para agradecer as palmas do público. “Hoje essa apresentaç­ão é muito especial. Nosso amigo Diogo poderia ter virado uma estatístic­a, uma triste estatístic­a”, disse o ator Persio Plensack.

Diferentem­ente da semana passada, quando o ator deixou o mesmo endereço e seguiu para a casa de sua família, no Capão Redondo, na noite desta terça ele seguiria para a casa do amigo que o levou ao hospital, onde foi medicado após as agressões.

Colegas em outra companhia teatral, os amigos tinham planos de ensaiar uma nova peça na manhã seguinte, antes de mais uma ida de Diogo à delegacia, onde é esperado para novos depoimento­s.

Eles [vigias do terminal de ônibus parque Dom Pedro 2º] podiam chamar a polícia [após as agressões de outro grupo], mas não o fizeram. Para mim isso é racismo sim

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