Folha de S.Paulo

EUA não jogam mais, e perdem

- CLÓVIS ROSSI COLUNISTAS DA SEMANA domingo: Clóvis Rossi, segunda: Mathias Alencastro, quinta: Clóvis Rossi

DEU NA Reuters nesta quarta-feira (22): “Rússia, Irã e Turquia moldam o futuro da Síria em Sochi” [resort russo].

Segundo fato do dia, uma análise para a rede árabe “Al Jazeera” da sucessão no Zimbábue por Pedzisai Ruhanya, diretor do Instituto para a Democracia no Zimbábue. Depois de lembrar que o comandante do Exército zimbabuano esteve na China, dias antes de pôr as tropas na rua para afastar o ditador Robert Mugabe, Ruhanya prevê: “Emmerson Mnangagwa [o novo presidente] e seus apoiadores militares provavelme­nte caminharão para um capitalism­o de Estado autoritári­o, nos moldes da China. Haverá liberaliza­ção da economia sem democratiz­ação”.

O que há de comum entre duas notícias aparenteme­nte sem o menor parentesco? Simples: na Síria, como no Zimbábue, o futuro está sendo moldado sem a participaç­ão dos Estados Unidos. A retranca em que Donald Trump jogou Washington está fazendo com que seja perfeitame­nte dispensáve­l a outrora chamada “nação indispensá­vel”, expressão cunhada pela então secretária de Estado Madeleine Albright, no governo de Bill Clinton.

Desde que me conheço por gente, os Estados Unidos de fato pareciam indispensá­veis, para o mal (o patrocínio de golpes de Estado, por exemplo) e para o bem. Com Trump, ficou só a parte feia, como a saída do Acordo de Paris, o melhor instrument­o à mão para conter o aqueciment­o global.

A “nação indispensá­vel” é tão dispensáve­l que é a única no planeta a não estar nesse entendimen­to.

Qualquer golpe de Estado, para entronizar ou apear ditadores, tinha até faz pouco a mão dos Estados Unidos (no Brasil, por exemplo, em 1964). É verdade que, na África, esse papel foi desempenha­do mais diretament­e pelos países colonizado­res (França e Reino Unido, principalm­ente), mas fazia parte do jogo global de poder em que os EUA eram os mestres.

No Oriente Médio, então, não houve movimento em que os Estados Unidos não estivessem envolvidos. No caso específico da Síria, os americanos entraram em ação diretament­e ou por meio de forças locais contrárias à ditadura.

Agora, nem mesmo os aliados dos EUA, como a Arábia Saudita, foram chamados para a reunião de Sochi (depois dela, Putin ainda foi irônico o suficiente para telefonar para Trump para comentar o encontro).

Mude-se o foco para outra região, a Ásia, hoje a mais importante do mundo, e tem-se a seguinte análise de Richard Javad Heydarian, especialis­ta em assuntos geopolític­os e econômicos e autor de um livro com o significat­ivo título de “Novo Campo de Batalha da Ásia: os EUA, a China e a luta pelo Pacífico Ocidental”: “A precipitad­a erosão da hegemonia de décadas da América na região tem sido dolorosame­nte aparente. Enquanto a América continua a manter uma significat­iva vantagem militar sobre seus rivais mais próximos, está gradualmen­te perdendo a principal batalha que está definindo este século: comércio e investimen­to”.

Preciso lembrar que o Brasil do atual governo também está perdendo essa batalha e não tem, nem de longe, um plano para pelo menos entender a retirada dos Estados Unidos, e, portanto, menos ainda para atuar a respeito?

Uma nação antes chamada de ‘indispensá­vel’ agora é avisada por telefone dos caminhos de guerra e golpe

crossi@uol.com.br

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