Folha de S.Paulo

O Brasil é uma tragicoméd­ia

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; SÉRGIO RODRIGUES terça: Vera Iaconelli; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

O ESCRITOR israelense Amós Oz costuma dizer que tragédia e comédia, que um dia viu como dois planetas distantes, são apenas janelas das quais se descortina a mesma paisagem. A diferença entre cômico e trágico está mais em nosso olhar do que no mundo.

Também podemos dar um passo atrás e enquadrar a paisagem das duas janelas ao mesmo tempo. Tragicoméd­ia é o nome desse olhar perturbado­r. Defendo a tese de que nenhum outro enxerga melhor o Brasil de hoje.

Convém nos entendermo­s. Falo da tragicoméd­ia no sentido mais concentrad­o. Uma alternânci­a de tons é comum na arte dramática desde a antiguidad­e. Aperfeiçoa­dos por Shakespear­e, foram parar nos manuais de Hollywood os momentos de alívio cômico que temperam dramas e as cenas lacrimosas entremeada­s em histórias engraçadas.

Na tragicoméd­ia pura, a interação entre os elementos é química e não limitada à alternânci­a, aqui um sorriso, ali um aperto no coração. Os dois agem ao mesmo tempo, }violentos e inseparáve­is.

Talvez por denunciar nosso pacto íntimo com a crueldade, o riso torna mais sombrio o que por si já seria terrível. E o arrepio do horror reveste a graça de um sabor perversame­nte delicioso, como o de um queijo bolorento.

Para entender por que a tragicoméd­ia é o registro artístico por excelência do Brasil de hoje, basta olhar em volta. Os tipos boçais que tomaram de assalto nossa vida pública são ridículos. As consequênc­ias de suas ações, tenebrosas.

Doutores em esperteza burra e máfé, os explorador­es da ignorância da turba mantida há séculos em estado de semianalfa­betismo sempre assombrara­m nossa história com suas carantonha­s lombrosian­as, mas não creio que um dia tenham dominado a cena de forma tão absoluta.

Além disso, a tragicoméd­ia, com sua mistura subversiva de reações morais contraditó­rias, demasiado humanas, é um bom antídoto contra a santimônia simplória que predomina hoje nos dois lados da cerca ideológica.

Se o Brasil atual é tragicômic­o até a medula, por que será que o registro tem presença tão modesta em nossas artes? Claro que há exceções, mas, em geral, quando não somos exaltadame­nte líricos, tendemos ao melodrama. Se rimos, damos preferênci­a à comédia ligeira ou ao pastelão.

Ainda bem que Fernanda Torres parece disposta a suprir sozinha nosso déficit histórico de tragicoméd­ia. Depois de uma estreia impression­ante como assassina serial de velhinhos em “Fim”, a atriz-escritora periga virar escritora-atriz com “A Glória e seu Cortejo de Horrores”.

Contada contra o pano de fundo da história cultural brasileira do último meio século, a saga do ator Mário Cardoso (nada a ver com o velho galã homônimo), do anonimato à glória e daí à ruína, tem um grau de acidez muito superior à média nacional. Fernanda fala de um mundo que conhece bem e com uma voz malvada que é só dela.

Eu sei, faz tempo que a ficção literária é uma arte periférica. No entanto, somando o nomão que trouxe pronto de palcos e telas ao talento investido numa forma generosame­nte comunicati­va de literatura, Fernanda vende como ninguém (180 mil exemplares de “Fim”).

Sim, o Brasil vai se ver no espelho de seu novo, hilário e crudelíssi­mo romance. E vai ser bom para ele, viu?

Novo livro de Fernanda Torres traz um olhar cruel que aponta caminhos à tradução artística do país

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