QUESTÃO CABELUDA
Livros infantis são retirados de escolas e livrarias por pressão de grupos de direita e esquerda que os consideram obras impróprias
DE SÃO PAULO
Peppa, a personagem cabeluda que ilustra esta página, não vai mais exibir os fios por aí: seu livro foi tirado de circulação neste mês. Antes, há quase seis meses, a obra “Enquanto o Sono Não Vem” também passou por algo parecido e teve um pedido de recolhimento feito pelo MEC (Ministério da Educação).
Os dois casos ilustram um movimento que vem tomando corpo no Brasil. Livros infantojuvenis se tornaram alvo de pressão de grupos ligados tanto à direita quanto à esquerda, que defendem a remoção de obras consideradas impróprias para crianças.
O caso mais recente é o de “Peppa”, da ilustradora Silvana Rando, publicado em 2009 pela Brinque-Book.
Com mais de 37 mil exemplares vendidos, o livro fala de uma garota que tem o “cabelo mais forte do universo”, “resistente como fios de aço”. Descontente, ela decide alisálo. Só que o tratamento prevê proibições, entre elas nadar na piscina e rir demais.
“Todas as páginas desse livro têm um problema. Todas. É um livro extremamente racista.” A opinião é da youtuber e ativista Ana Paula Xongani. A crítica feita em abril de 2016 em seu canal viralizou.
A polêmica se estendeu por um ano e meio, até que, no início deste mês, editora e escritora decidiram recolher o título.
“Percebi que dois livros passaram a existir: o que eu criei, com uma mensagem de aceitação das diferenças, e o da interpretação da Ana Paula. Não queria que crianças se machucassem por causa de uma mediação de leitura enviesada. Por isso optei pela retirada”, afirma Silvana.
A história não é mais vendidas pela Brinque-Book. Livrarias que tinham exemplares em consignação tiveram que devolvê-los ou comprálos. O material recolhido ficará em um depósito da editora.
“Minha intenção era que o livro não atingisse as crianças”, disse Xongani à Folha. E completa: “Ele é inadequado para essa faixa etária.”
Em junho, o ministro da Educação, Mendonça Filho (DEM), usou frase parecida para falar de “Enquanto o Sono Não Vem”. “Faremos ação de proteção das crianças, para que elas não tenham acesso a uma literatura inadequada às suas faixas etárias.”
O livro de José Mauro Brant, publicado pela Rocco em 2003, reúne contos da cultura popular e foi selecionado pelo governo federal em 2014 para ser distribuído em escolas públicas do país.
No capítulo “A Triste História de Eredegalda”, um pai propõe casamento à filha, que nega a proposta. Acusações de incesto e pedofilia varreram a internet no primeiro semestre. Em seguida, um parecer técnico do MEC considerou a obra inadequada e recomendou o recolhimento dos 93 mil exemplares adquiridos.
Em nota, o ministério informa que, como os livros já estavam em fase final de distribuição, Estados e municípios foram orientados a encaminhá-los para bibliotecas.
“Conheço professores que conseguiram impedir a retirada. Foi um teatro do MEC”, diz Brant. Autor e editora defendem que a história é contada desde os tempos medievais. “Não existe pedofilia. Existe, sim, um incesto não realizado. Mas a personagem diz ‘não’ à violência”, afirma.
Para Maria Cristina Castilho Costa, coordenadora do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura da USP, não há censura neste caso porque a obra continua em livrarias e bibliotecas.
“Mas convivemos com casos indiretos de censura. Principalmente por via judicial ou quando, para evitar um processo, alguém retira o seu conteúdo de circulação.” Ana Paula Xongani diz não ser o caso de “Peppa”. “Estimulamos o debate. Censura não prevê diálogo.”