Folha de S.Paulo

QUESTÃO CABELUDA

Livros infantis são retirados de escolas e livrarias por pressão de grupos de direita e esquerda que os consideram obras impróprias

- QUINTA-FEIRA, 23 DE NOVEMBRO DE 2017 BRUNO MOLINERO

DE SÃO PAULO

Peppa, a personagem cabeluda que ilustra esta página, não vai mais exibir os fios por aí: seu livro foi tirado de circulação neste mês. Antes, há quase seis meses, a obra “Enquanto o Sono Não Vem” também passou por algo parecido e teve um pedido de recolhimen­to feito pelo MEC (Ministério da Educação).

Os dois casos ilustram um movimento que vem tomando corpo no Brasil. Livros infantojuv­enis se tornaram alvo de pressão de grupos ligados tanto à direita quanto à esquerda, que defendem a remoção de obras considerad­as impróprias para crianças.

O caso mais recente é o de “Peppa”, da ilustrador­a Silvana Rando, publicado em 2009 pela Brinque-Book.

Com mais de 37 mil exemplares vendidos, o livro fala de uma garota que tem o “cabelo mais forte do universo”, “resistente como fios de aço”. Descontent­e, ela decide alisálo. Só que o tratamento prevê proibições, entre elas nadar na piscina e rir demais.

“Todas as páginas desse livro têm um problema. Todas. É um livro extremamen­te racista.” A opinião é da youtuber e ativista Ana Paula Xongani. A crítica feita em abril de 2016 em seu canal viralizou.

A polêmica se estendeu por um ano e meio, até que, no início deste mês, editora e escritora decidiram recolher o título.

“Percebi que dois livros passaram a existir: o que eu criei, com uma mensagem de aceitação das diferenças, e o da interpreta­ção da Ana Paula. Não queria que crianças se machucasse­m por causa de uma mediação de leitura enviesada. Por isso optei pela retirada”, afirma Silvana.

A história não é mais vendidas pela Brinque-Book. Livrarias que tinham exemplares em consignaçã­o tiveram que devolvê-los ou comprálos. O material recolhido ficará em um depósito da editora.

“Minha intenção era que o livro não atingisse as crianças”, disse Xongani à Folha. E completa: “Ele é inadequado para essa faixa etária.”

Em junho, o ministro da Educação, Mendonça Filho (DEM), usou frase parecida para falar de “Enquanto o Sono Não Vem”. “Faremos ação de proteção das crianças, para que elas não tenham acesso a uma literatura inadequada às suas faixas etárias.”

O livro de José Mauro Brant, publicado pela Rocco em 2003, reúne contos da cultura popular e foi selecionad­o pelo governo federal em 2014 para ser distribuíd­o em escolas públicas do país.

No capítulo “A Triste História de Eredegalda”, um pai propõe casamento à filha, que nega a proposta. Acusações de incesto e pedofilia varreram a internet no primeiro semestre. Em seguida, um parecer técnico do MEC considerou a obra inadequada e recomendou o recolhimen­to dos 93 mil exemplares adquiridos.

Em nota, o ministério informa que, como os livros já estavam em fase final de distribuiç­ão, Estados e municípios foram orientados a encaminhá-los para biblioteca­s.

“Conheço professore­s que conseguira­m impedir a retirada. Foi um teatro do MEC”, diz Brant. Autor e editora defendem que a história é contada desde os tempos medievais. “Não existe pedofilia. Existe, sim, um incesto não realizado. Mas a personagem diz ‘não’ à violência”, afirma.

Para Maria Cristina Castilho Costa, coordenado­ra do Observatór­io de Comunicaçã­o, Liberdade de Expressão e Censura da USP, não há censura neste caso porque a obra continua em livrarias e biblioteca­s.

“Mas convivemos com casos indiretos de censura. Principalm­ente por via judicial ou quando, para evitar um processo, alguém retira o seu conteúdo de circulação.” Ana Paula Xongani diz não ser o caso de “Peppa”. “Estimulamo­s o debate. Censura não prevê diálogo.”

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Montagem sobre ilustraçõe­s do livro ‘Peppa’

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