Folha de S.Paulo

Grupo Satyros traz carnaval de genitálias para São Paulo atual

- ANDREA ORMOND

reforço da paranoia que acompanha relações de trabalho desiguais e hierárquic­as.

Salles Torres o dedica a antigos vizinhos. Resta saber qual benefício pode trazerlhes a imaginação voyeurista do que fazem empregados longe da vista dos patrões.

FOLHA

São apenas 76 minutos. Consideran­do o título e a duração, “A Filosofia na Alcova” poderia passar por uma inofensiva teleaula.

No entanto, Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez — da companhia teatral Os Satyros— dirigem e adaptam o livro homônimo do Marquês de Sade. Carnaval de genitálias, frases chocantes e penetraçõe­s explícitas.

Na trama do filme, exibido recentemen­te no festival Mix Brasil, Eugénie (interpreta­da por Bel Friósi) é levada por Juliette (Stephane Sousa) e Dolmancé (Henrique Mello) a uma jornada escura de prazeres.

Até aí, nada de novo no fronte. A lista de filmes que deslizam entre a pornografi­a e o “cinema de arte” é imensa e antiga.

“O Império dos Sentidos” (1976), de Nagisa Oshima, “Calígula” (1979), de Tinto Brass, Bob Guccione e Gincarlo Lui, “The Punishment of Anne” (1975), de Radley Metzger. Jesús Franco adaptou a história de “A Filosofia na Alcova”, batizando-a de “Eugénie”, em 1973. A atriz Chloë Sevigny praticou uma felação em “Brown Bunny” (2003), de Vincent Gallo, diretor que também era o astro do filme.

Sexo não é mais uma caixa de interdiçõe­s. Tornouse comum e fútil. Para o Marquês de Sade —morto em 1814—, até poderia levar à contestaçã­o ou ao ateísmo. O demônio ainda assustava e nada melhor do que encarná-lo em atos sexuais. Juntem-se a isso os debates sobre racionalid­ade, paixão, república, aristocrac­ia.

Mas o que dizer de um país como o Brasil? Sade cairia de quatro se conhecesse o sincretism­o religioso. Os maldosos Exus, a exibicioni­sta Pomba Gira, o malandro Zé Pelintra. “Viagem ao Céu da Boca” (1981), de Roberto Mauro, usou o imaginário.

A análise da obra de Cabral e Vázquez não pode prescindir de todo esse contexto. O que está fora é superior ao que está dentro do filme. Não deslumbra, embora tenha bons momentos. Como Phedra de Córdoba, em uma representa­ção da vaidade, diante do espelho.

Chama atenção o fato de vir para o cinema um texto que os Satyros já haviam adaptado para o teatro há quase 15 anos (em 2003).

O grupo brinca na contradiçã­o entre o universo do Marquês —com pó de arroz, corseletes, perucas— e a São Paulo de 2017. Quando o narrador fala em “propriedad­es ao sul da nação”, vemos casas pobres da periferia. Ao invés das salas de tortura de Marie Tussaud, aparecem galpões urbanos.

Nem se pode argumentar que o filme é misógino. Os personagen­s Juliette e Dolmancé comandam as orgias juntos e se colocam mais na bestialida­de do que na guerra dos sexos. A festa é livre.

Por tudo isso, quando cogitarem de censurar “A Filosofia na Alcova”, o interlocut­or poderá responder sem medos. Nada é novo, nada foi criado por vândalos. É apenas mais uma versão para um clássico de 200 anos.

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