Folha de S.Paulo

CRÍTICA Fantasmas da guerra cavalgam motos

‘Não Devore Meu Coração’ é mistura ambiciosa de gêneros com Cauã Reymond e bom elenco

- THALES DE MENEZES

Para a maior parte do público, notadament­e quem acompanha novelas de TV, “Não Devore Meu Coração” poderá ser chamado de “o novo filme do Cauã”. É compreensí­vel, pelo furor que Cauã Reymond provoca em sua legião de fãs. Mas há muito mais para destacar no intrigante longa que estreia nesta quinta nos cinemas.

Não falta ambição ao roteiro do diretor Felipe Bragança, que se arrisca numa mistura de filme de estrada, romance de formação, faroeste moderno e realismo fantástico. E se dá muito bem.

O que poderia parecer indefiniçã­o acaba moldando um gênero híbrido, mas coeso. E isso é resultado, em grande parte, do equilíbrio delicado entre os dois protagonis­tas da história, o motoqueiro Fernando (Reymond) e seu irmão caçula, o adolescent­e Joca (Eduardo Macedo).

A divisa do Brasil com o Paraguai serve de cenário. Traz, além da dualidade entre estradas inóspitas e alguns recônditos deslubrant­es na mata, a carga opressora da Guerra do Paraguai (1864-1870), até hoje o combate mais violento na história brasileira.

O diretor usa motociclet­as como símbolos de força em situações que podem remeter à guerra ancestral, na disputa entre gangues de motoqueiro­s dos dois países. No grupo brasileiro, na Gangue do Calendário (cada integrante tem como codinome um mês do ano), Fernando tem uma relação ambígua, misteriosa, com o líder do bando.

No lado paraguaio, um dos motoqueiro­s é primo e admirador de Basano La Tatuada (Adeli Gonzales), a menina pela qual Joca está apaixonado. Aos poucos, todos os personagen­s vão criando conexões mais densas, numa construção de conflitos que prevê desfechos dramáticos.

Felipe Bragança tem dois longas em codireção com Marina Meliande, “A Fuga da Mulher Gorila” (2009) e “A Alegria” (2010), e um punhado de roteiros aproveitad­os em filmes memoráveis.

Sua colaboraçã­o mais celebrada é com Karim Aïnouz, que dirigiu seus textos em ““O Céu de Sueli” (2006) e “Praia do Futuro” (2014).

Os méritos de “Não Devore Meu Coração” começam no roteiro, com os perfis dos irmãos. Fernando, desiludido no fim de mundo que habita, combate seu tédio com o risco da velocidade em cima da moto e o sexo farto e sem consequênc­ias com as garotas do lugar. Parece temer aquilo em que sua vida se transformo­u.

Joca vive a primeira paixão adolescent­e, é assaltado pelos ecos quase fantasmagó­ricos da violência na região e não sabe o que fazer para seguir em frente. Parece temer aquilo em que sua vida pode se transforma­r.

Para adaptar os contos do escritor sul-matogrosse­nse Joca Reiners Terron nesse filme que transita facilmente entre o real e o onírico, Bragança conta com uma preciosa ajuda de seu elenco.

Cauã Reymond se esforça muito no personagem que, entre as variações de tom no longa, fica um tanto preso no registro de um herói embrutecid­o e sem esperanças. Na facção teen da trama, Eduardo Macedo, ótimo, e Adeli Gonzalez conduzem bem seu romance relutante.

“Não Devore Meu Coração” tem muitos acertos, que talvez não provoquem clamor popular. Mas é um cinema inquieto, longe de qualquer zona de conforto. DIREÇÃO Felipe Bragança ELENCO Cauã Reymond, Eduardo Macedo, Ney Matogrosso PRODUÇÃO Brasil, 2017, 16 anos QUANDO estreia na quinta (23) AVALIAÇÃO muito bom

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