Folha de S.Paulo

Brinquedo que não tem

- COLUNIST ASD EST AS EMANA segunda: Alessandr aO rofino; J A I RO MARQU E S terça: Vera Iaconelli; quarta: Jair oMa rques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tat iB ernardi; sábado: Luís Francisc oCa rvalho Filho; domingo: Antonio Prata

“O PAPAI foi com a gente no carrinho do Papai Noel, não é, mamãe?” Muito mais breve do que eu imaginava, Elis, aos dois anos e meio, já consegue notar que nem sempre o mundo acolhe as necessidad­es de um cadeirante e também já vibra com as pequenas conquistas inclusivas em família.

Era apenas um passeio despretens­ioso no shopping para que ela visse as luzes natalinas, os enfeites e puxasse a barba do velho do saco, mas quando se sai com criança o potencial de surpresas é sempre incontrolá­vel.

Após uma sessão de fotos com pinheiros gigantes, guirlandas e jujubas, chegava a hora do gira-gira, formado por renas e trenós. “Veeem, pai”, gritava a menina, que foi logo engambelad­a pela mãe e me poupou da vertigem.

Embora houvesse uma rampa para acessar o brinquedo, fiquei de fora tirando fotografia e viajando nos pensamento­s —quanto a vida dá voltas, literalmen­te. Eu, que nunca embarquei em gira-gira nenhum em minha infância, contemplav­a minha menina alucinada sobre um bicho de pelúcia bem menos charmoso que um veado do cerrado.

Dali, ela quis ir ao escorregad­or, que simulava a grande fábrica de presentes de Noel. Enganchou-se logo no primeiro degrau, bem antes do tubo da felicidade deslizante. Corre a mãe para ajudá-la. Fiquei na torcida, emanando pensamento­s positivos. Deu tudo certo. Muitas risadas, muita alegria.

Eis que surge em nosso trajeto encantado pela “Lapônia” plastifica­da Para eu entrar no trenó, o passeio de todos teve de aguardar; só quem parecia nada chateada era Elis uma fila daquelas rabugentas, cheia de crianças ansiosas e pais suando para mantê-las com um mínimo de compostura. Elis não titubeia e nos amarra em seu desejo urgente:

“É a casa do Papai Noeeel, vamos! Tem trenó, papai!”

Nessas horas, não tem outra solução a não ser segurar firme na mão de nossa senhora da bicicletin­ha e enfrentar a fila, a ansiedade da menina e a vontade de mandar o espírito natalino às favas.

Os olhos de Elis soltavam feixes de pura fofura a cada vez que saía um novo trenó de dentro da casa trazendo um pequeno radiante e pedindo pra ir de novo, “só mais uma vez”.

“Nesse você vai, né, papai?”. Contaminei demais minha filha com a política do “todo mundo junto” e agora me vejo em maus lençóis tendo de dizer a ela que nem tudo poderemos seguir atados. É uma sensação estranha, uma certa impotência de viver, mas que faz parte dessa jornada “malacabada”.

Nesse momento, somos abordados por uma ajudante de Noel, toda vestida de verde. “Você vai embarcar também? Temos um trenó acessível para pessoas com deficiênci­a”. Relutei, em princípio, mas tive de ceder ao sonho de minha menina de ver sua galera curtindo lado a lado aquele momento tão lúdico.

Desmonta o trenó, traz uma rampa móvel, leva o papai para dentro do carrinho, ata o cinto de segurança, testa se vou suportar a velocidade de 5 km/h e a fila vai ganhando mais e mais gente, pois, para que eu entrasse, o passeio de todos teve de aguardar por alguns momentos. Só quem parecia nada chateada com a espera era Elis.

Vi a “neve”, presentes caindo da chaminé, Papai Noel se balangando e minha filha em êxtase. Lembrei da exclusão da minha infância, de minha mãe passando comigo sempre longe dos brinquedos e parquinhos. Criança muda a vida da gente. Felicidade é brinquedo que não tem. jairo.marques@grupofolha.com.br

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