Premiado no México, Carrère se diz em crise criativa
Francês, que ganhou o Prêmio FIL, diz ter dificuldade de achar tema tão poderoso quanto o de ‘O Reino’, que ele adapta para série
Depois de investigar sua própria fé por meio de um romance que o levou às origens do cristianismo e que vendeu mais de 500 mil cópias no mundo — “O Reino”, lançado no Brasil em 2016 pela Alfaguara—, o francês Emmanuel Carrère, 59, volta a ter uma crise, senão religiosa, agora de criatividade.
“‘O Reino’ foi uma resposta a uma inquietação interior que eu sentia havia muitos anos. Agora tenho que buscar um novo assunto. Mas que assunto pode competir com esse, que é tão poderoso?”, conta o escritor à Folha na FIL (Feira Internacional do Livro de Guadalajara).
Carrère diz incomodar-se quando as pessoas dizem ter lido “O Reino” apenas pelo lado religioso.
“Na verdade é um romance sobre como contar uma história. Como se construiu essa história que é a de Jesus e como esta vem sendo recontada com tanta eficiência que perdure tantos e tantos anos, que atravessa gerações, fronteiras e oceanos. Foi uma investigação sobre como essa história foi levada adiante com tanto sucesso.”
No México para receber o prêmio dado anualmente na FIL ao conjunto da obra de um autor de expressão neolatina, Carrère fez, em seu discurso, um elogio ao escritor local Juan Rulfo (1917-86).
Rulfo, disse o francês, “tocou fundo a alma dos mexicanos em romances em que pouco é dito pelos personagens, mas tudo é expresso pelo modo como descreve o sentimento humano nessas terras”. Juan Rulfo —que antes dava nome ao Prêmio FIL— nasceu no Estado de Jalisco, onde se localiza Guadalajara.
Outro homenageado pelo francês foi o americano Truman Capote (1924-84). “Sua capacidade de ouvir, captar sensações e não ter medo de envolver-se em suas histórias são o que me guiam em meus textos de não ficção.”
É justamente uma coletânea de não ficção que Carrère lança no evento. “Conviene Tener un Sitio Adonde ir” (“convém ter um lugar aonde ir”, Anagrama) reúne textos escritos entre 1990 e 2015.
Estão na compilação “A Vida de Julie”, a história de uma garota viciada em San Francisco, uma entrevista em que Catherine Deneuve desmonta o entrevistador e uma visita à Romênia dos anos 1990, após o fim da ditadura de Nicolae Ceausescu (1965-89).
“Eu tinha ficado impressionado com como foram televisionados o julgamento e o fuzilamento de Ceausescu, e quis ir até lá, para saber o que havia ficado daquela explosão de ira que foi o fim do regime comunista e visitar aqueles palácios, as construções da ditadura, então vazios, mas cheios de significados.”
A escolha dos textos para a coletânea, porém, não foi fácil, pois há anos Carrère leva paralelamente à vida de romancista, a de cronista, jornalista, roteirista e ensaísta.
“Eu e meu editor nos pusemos a revisar os artigos e a deixar coisas de fora. E esses processo de editar também é um processo criativo.” SÉRIES Enquanto busca tema para um romance, Carrère se dedica a escrever roteiros.
“O Reino” vai virar minissérie. “Por melhor que seja a obra, a série baseada nela pode ser um fracasso se você não fizer uma cirurgia em sua estrutura, com os cortes de tempo, com a introdução dos elos com que cada capítulo termina, tudo isso sem ferir o texto. É um grande desafio.”
Carrère concorda que virou um clichê dizer que “as séries são onde está a criatividade artística de nosso tempo”.
O escritor considera que isso seja, em parte, verdade, mas que elas nada seriam “sem a literatura por trás”.
“Não há como escrever um bom roteiro, construir a narrativa de uma boa história sem ter passado batido pela literatura, pois a literatura está no processo.”
Por outro lado, Carrère alerta para a necessidade de escolher bem as séries —elas, diz, “consomem demasiado tempo e a vida é curta”, ri. Conta que vê duas ou três por ano, “no máximo”.
Falando de cinema, manciona Glauber Rocha (193981), de quem se diz fã. “Foi um dos cineastas que mais admirei na juventude; depois revi recentemente e me dei conta da profundidade das questões de que ele tratava.”