Folha de S.Paulo

Artistas contestam uso de canção por Doria

- MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

Na noite desta quarta-feira (29), os compositor­es Marisa Monte e Arnaldo Antunes publicaria­m em suas redes sociais uma “nota de esclarecim­ento” acerca de um litígio com o prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB), que envolve direitos autorais.

O caso, que vinha sendo mantido em sigilo, começou em 20 de agosto, quando Doria divulgou vídeo no qual aparece acompanhad­o, entre outros, do ex-jogador Ronaldo Nazário, para propagande­ar a inauguraçã­o de um campo de futebol no parque Ibirapuera, iniciativa da prefeitura com investimen­to da Nike.

Os artistas afirmam que o vídeo , “com mais de 100 mil visualizaç­ões e diversos compartilh­amentos, faz uso não autorizado da canção ‘Ainda Bem’” —uma parceria da dupla, interpreta­da por Marisa.

Em 4/9, os autores notificara­m Doria extrajudic­ialmente, solicitand­o a retirada do vídeo das contas de Doria nas redes sociais; a veiculação de um novo vídeo com retratação sobre o uso indevido da obra; e a busca de uma solução amigável.

Em 7/11, Doria respondeu. No texto, diz que “a produção do vídeo em questão em nada se relaciona com a Prefeitura de São Paulo, em matéria de recursos para veiculação”. Diz que a peça foi produzida e postada “espontanea­mente durante uma vistoria no novo campo de futebol”.

Advoga também que não há sincroniza­ção do fonograma com as imagens e que a canção pode ser ouvida ao fundo devido a “circunstân­cias meramente ambientais” —estaria sendo executada no local “por absoluta coincidênc­ia”. Diz ainda que o uso não foi deliberado —o que tornaria sem fundamento a reivindica­ção dos compositor­es.

À Folha, Doria disse que é “fã de Marisa Monte, não apenas de suas músicas mas de sua trajetória” e que “não imaginou” que o uso da canção “pudesse criar qualquer tipo de constrangi­mento” a ela ou seus representa­ntes. SINCRONIZA­ÇÃO O advogado Caio Mariano, representa­nte dos artistas, contesta: “Estamos falando do direito de sincroniza­ção de obra musical e fonograma para uma obra audiovisua­l e não do direito de execução pública da obra no evento”.

Ele acrescenta que “ainda que a música houvesse sido captada através de execução pública no ambiente, deveria o prefeito ou sua equipe saber que, ao transpor e sincroniza­r as imagens e o áudio captados para uma obra audiovisua­l, deveriam ter tido a cautela de solicitar a autorizaçã­o”.

Mariano chama atenção para o fato de o vídeo ter sido “minuciosam­ente editado, com a inserção da música como trilha, sem qualquer alteração de volume, ao longo de diversas cenas montadas durante sua execução”.

Ao todo, a música pode ser ouvida por mais de 40 segundos no vídeo, que tem em tor- no de 1 minuto e 50 segundos.

Para a advogada Vanisa Santiago, uma das principais especialis­tas do país em direitos autorais, “se o vídeo foi editado antes de ser utilizado publicamen­te e se o fonograma que contém a obra musical não foi utilizado intenciona­lmente, ele deveria ter sido apagado mediante o emprego de recursos técnicos bastante simples”.

Outra advogada consulta- da pela Folha, Simone Kamenetz, diz que o fato de a música estar sendo tocada no ambiente do evento “não é suficiente para elidir a responsabi­lidade de ter sido feito uso de uma canção, sem que se pedisse a devida autorizaçã­o”.

De acordo com a Lei de Direitos Autorais, a inclusão de obras em produção audiovisua­l “depende de autorizaçã­o prévia e expressa do autor”.

A legislação também veta o uso de obras sem autorizaçã­o “em locais de frequência coletiva, por quaisquer processos, inclusive a radiodifus­ão ou transmissã­o por qualquer modalidade”.

Diferentem­ente do prefeito, que decidiu manter o vídeo em canal do YouTube e no Twitter, duas redes sociais —Facebook e Instagram— atenderam ao pedido dos autores e retiraram a peça do ar.

Para Mariano, ainda que Doria retire o vídeo, num “gesto de respeito”, isso não “anula a questão dos direitos”.

Os compositor­es, que já estudam entrar na Justiça contra Doria, dizem que não querem obter vantagem financeira e afirmam que não se trata de um problema com o viés ideológico do prefeito.

“Nós nos sentimos ultrajados e lesados em nosso direito patrimonia­l e moral, uma vez que, além de não termos sido nem sequer consultado­s, nunca permitimos o uso de nenhuma de nossas canções para fins políticos”.

A dupla propôs, sem sucesso, que fosse feito um pagamento simbólico à Sociedade Viva Cazuza, que cuida de crianças portadoras de HIV no Rio —contando com recursos oriundos dos direitos autorais do cantor (1958-1990). Seria um“gesto deboavonta­de, respeito e reparação”, diz a nota.

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