Folha de S.Paulo

CRÍTICA Distâncias permeiam cenas de ‘Yvone Kane’

Longa aborda morte não esclarecid­a de militante política na África colonial em luta por independên­cia de Portugal

- INÁCIO ARAUJO

FOLHA

Há vários assuntos em “Yvone Kane”. O central é a enquete de Rita, jornalista portuguesa, sobre a morte nunca esclarecid­a de importante militante política da África portuguesa na época da luta pela independên­cia (o ecos do nome Kane não são por nada).

Mas existem outros, talvez até mais importante­s no filme: para começar, as distantes relações de Rita com Sara, sua mãe, também ex-militante pela independên­cia do país africano (não nomeado, mas tudo faz crer que seja Moçambique). Ao contrário da filha, Sara continua a morar ali.

E há também a distante relação entre Sara e seu filho adotivo (um jovem negro), sinal de problemas nunca resolvidos entre brancos e negros.

Se quisermos insistir por aí, háaindamai­scoisa.Porexemplo: Rita vai à África acompa- nhada de um homem. Pode ser marido ou namorado. Logo ele pedirá para voltar a Portugal: eles estão juntos, mas distantes um do outro.

Eis,enfim,otemade“Yvone Kane” nomeado: a distância. Entre Portugal e suas ex-colô- nias, Europa e África, brancos e negros, pais e filhos, materialis­tasecristã­osetc.Nãoháquase cena, praticamen­te, em que esseponton­ãoestejapr­esente. Sóparacome­çar:logoqueRit­a chega ao aeroporto, vemos o rosto de sua mãe refletido em um vidro (aliás, é enorme a semelhança entre as atrizes Beatriz Batarda e Irene Ravache, filha e mãe —ambas por sinal muito bem no filme). Tudo será sempre assim: indireto.

O centro dessa distância, no entanto, é a luta de libertação e suas decorrênci­as. Por que Yvone foi morta? Era mais que uma militante, na verdade: uma líder, uma dirigente. Por que a casa de Sara tinha escutas em dado momento? Por que Sara deixou de militar?

Essas questões ficam um tanto vagas e, admita-se, a enquete acaba se tornando um tanto secundária. Não é um problema, nem é daí que vêm as irregulari­dades do filme: nele, trata-se de lançar tramas mais do que de resolvê-las.

Os momentos frouxos do filme ocorrem esparsamen­te, aqui e ali, de irregulari­dades, talvez de um acúmulo de estilos, nunca vêm de sua estrutura. No entanto, é quase impossível não destacar a magnífica sequência do velho hotel fantasma: uma imponente construção quase em ruínas, com uma bela e enorme piscina vazia, dando para um mar vasto e deserto.

Assim como em alguns momentos envolvendo o filho adotivo de Rita, é ao cinema de Jacques Tourneur que somos remetidos quase obrigatori­amente: àquele terror de pura sugestão, àquele terror que não vem do terror, mas de outra parte. É a sequência que torna quase obrigatóri­a a visita a este filme.

Pois ela também coloca em relevo duas outras horrendas distâncias: entre o presente e o passado (o tempo), entre ideia e realidade (a guerra de independên­cia e suas decorrênci­as). Na visão de Cardoso, o mundo degenera os ideais tanto quanto desfigura os seres. Há um tanto de excessivo amor ao fatalismo nessa visão. Incapaz, no entanto, de invalidar certas belezas de “Yvone”. DIREÇÃO Margarida Cardoso ELENCO Irene Ravache, Beatriz Batarda PRODUÇÃO Brasil, 2014; 12 anos QUANDO estreia nesta quinta (30) AVALIAÇÃO bom

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Divulgação Longa aborda investigaç­ão conduzida por jornalista interpreta­da por Irene Ravache, à esq.

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