Folha de S.Paulo

Quando a vaca cruza com o jumento

- REINALDO AZEVEDO

AQUI E ali leio e ouço reclamaçõe­s sobre a “velha política”. Da extrema esquerda à extrema direita, reivindica-se a novidade como valor em si, como categoria política ou de pensamento. Até conservado­res fazem dela um fetiche, o que é coisa de hospício.

Jair Bolsonaro, por exemplo, quer-se o novo, especialme­nte agora que arrumou um Paulo Guedes para chamar de seu, uma fórmula que, segundo o economista e financista, junta a “ordem” (suponho que seja o militar reformado) com o “progresso” (acho que se refere, com modéstia peculiar, a si mesmo).

A facilidade com que nossos “sedizentes” liberais se juntam a autoritári­os é já uma tradição. Lembrando um poema-piada de Oswald de Andrade, a um liberal à moda brasileira ocorreria vestir o índio, mas nunca despir o português.

Ao se referir ao rebento que nasceria do casamento (“hétero”, o deputado frisou; Deus do céu!) de Bolsonaro com Guedes, Elio Gaspari lembrou a suposta resposta de Bernard Shaw a Isadora Duncan quando esta lhe teria proposto que tivessem um filho, que nasceria, então, com o cérebro dele e o corpo dela. Teria declinado do convite alertando para o risco de a criança ter o corpo dele e o cérebro dela.

A história é boa, mas não aconteceu. Shaw a desmentiu. No máximo, admitiu que ela se ofereceu para dançar para ele sem véus. Segundo disse, esqueceu-se de comparecer ao encontro. Para Oswald, tudo indica, ela dançou ao passar por Banânia...

A minha metáfora é um pouco mais rural, caminhando também ela para o clichê. É a história do caipira que cruzou a vaca com o jumento para extrair de ambos o melhor. O híbrido nem dá leite nem puxa o arado. Pior: baba como um ruminante e dá coice como um asinino. O caipira do Mazzaropi, que, de tonto, só tinha o andado, não cairia nessa.

O liberal brasileiro —“o novo”?— talvez seja ainda um ser em construção. Temos de aposentar fantasias cesaristas, que nunca estiveram tão salientes como nestes tempos de autoprocla­mada “nova política”, com protagonis­tas que, de tão “novos”, não conseguem nem revelar suas fontes de financiame­nto. No livro “10 Mandamento­s: do País que Somos ao País que Queremos”, Luiz Felipe D’Ávila evidencia os muitos consensos entre um reacionári­o de direita, como Oliveira Vianna, e um reacionári­o de esquerda, como Caio Prado Júnior. O que eles tinham em comum? O desprezo à democracia liberal, que considerav­am decadente.

Foi a fantasia autoritári­a e dita modernizad­ora do “ilegalismo” militante da Lava Jato que conduziu o país, até aqui ao menos, a uma escolha entre Lula e Bolsonaro. Foi a fantasia autoritári­a e dita modernizad­ora do STF legiferant­e que proibiu a doação de empresas a campanhas, jogando a eleição no colo do crime organizado; que violou a Constituiç­ão ao impor a parlamenta­res medidas cautelares não previstas na Carta; que está prestes ou a instaurar o caos judicial na política ou a aumentar brutalment­e a máquina judiciária ao mudar de modo cartorial o foro especial.

Já a “velha política” se encarregou de se articular com o Congresso para aprovar teto de gastos; mudança no marco do pré-sal; reestrutur­ação do setor elétrico; reforma trabalhist­a; reconstruç­ão do ensino médio e, quem sabe?, alguma reforma da Previdênci­a —que teria sido aprovada na sua forma original, não fossem as reinações dos “modernos” da holding “JJ&FF” (Janot-Joesley & Fachin-Funaro).

A “velha política” negociou até um espeto de R$ 10 bilhões —esqueletos de planos econômicos passados —que se arrastava há 24 anos. O dinheiro sai da abstração da burocracia e vai para a economia, que voltou a crescer e tem uma trilha clara caso se façam as escolhas certas. Mas quê... “Modernos” —a exemplo dos procurador­es que Raquel Dodge não consegue devolver à casinha da Constituiç­ão —insistem em tratar o Congresso a tapas e pontapés.

Numa coisa os reacionári­os de direita e de esquerda da “nova política” concordam sem pestanejar: acham a democracia liberal uma porcaria! Com Oliveira Vianna e Caio Prado à mão, deve-se perguntar: o que há de novo nisso?

Da extrema esquerda à extrema direita, reivindica-se a novidade como valor em si

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