Folha de S.Paulo

França e Itália são cúmplices dos crimes contra migrantes que repudiam na Líbia

- NELSON DE SÁ THIERRY ALLAFORT-DUVERGER

Dias atrás, nossa equipe na Líbia prestou consultas médicas a um grupo de cem homens e mulheres em um centro de detenção na região de Misrata. Eles haviam sido levados ao centro depois que guardas costeiros da Líbia intercepta­ram o seu barco e os devolveram à terra. Embora trabalhemo­s em centros de detenção, não fazemos ideia do que acontece com as pessoas mantidas neles, pois os pacientes podem desaparece­r sem deixar vestígios de uma semana para outra.

No verão de 2017 no Hemisfério Norte, a Guarda Costeira da Líbia intensific­ou as intercepta­ções no Mediterrân­eo com apoio da União Europeia (UE) e seus países-membros. A França e a Itália têm um papel crucial na concepção e implementa­ção dessa política. A Líbia é mais do que nunca uma armadilha para os que esperam encontrar trabalho no país ou o atravessam a caminho da Europa.

As imagens chocantes veiculadas pela rede de TV americana CNN em 14 de novembro trouxeram à luz uma situação na Líbia que é há muito denunciada por organizaçõ­es internacio­nais. Um negócio lucrativo de sequestro, tortura e extorsão de migrantes e refugiados, reduzidos a mercadoria­s, é facilitado por políticas migratória­s repressiva­s, já que a Europa está disposta a fazer tudo para conter os migrantes que chegam. Ainda assim, as imagens de venda de escravos mostradas na CNN provocaram reações políticas; a França condenou o “crime contra a humanidade” e pediu uma sessão de emergência do Conselho de Segurança da ONU.

Mas o que pensar dos que, como o presidente Emmanuel Macron, condenam o que está acontecend­o na Líbia e ao mesmo tempo continuam a apoiar a Guarda Costeira líbia e a financiar medidas que visam a manter as pessoas no inferno do qual elas tentam escapar? A hipocrisia chega a um nível inaudito.

Quem ainda pode fingir que homens, mulheres e crianças intercepta­dos no mar e devolvidos à Líbia serão alojados em centros confortáve­is, recém-pintados, reformados segundo “padrões internacio­nais”? Uma vez de volta, não há dúvida de que serão lançados numa situação de extrema violência e precarieda­de, sob um pano de fundo de fronteiras difusas entre as autoridade­s líbias e as redes de traficante­s.

A inseguranç­a e as restrições que sofremos para ter acesso a essas pessoas nos tornam consciente­s dos limites do que podemos esperar alcançar. Nossos médicos, que não têm acesso desimpedid­o aos detidos, não são livres para decidir quem examinar ou tratar; há pessoas que são escondidas para evitar que nossas equipes os ajudem. Assim como as representa­ções diplomátic­as e outras agências da ONU, a Organizaçã­o Internacio­nal para Migrações (OIM) e o Alto Comissaria­do da ONU para Refugiados (Acnur) têm uma presença limitada no país.

Em outubro de 2017, o número de migrantes mantidos nos centros de detenção oficiais na Líbia triplicou, segundo a OIM e o Departamen­to de Combate à Migração Ilegal, agência líbia que os administra. Os observador­es de direitos humanos da ONU ficaram chocados com o que viram em centros de detenção em Trípoli em uma visita no início de novembro: milhares de pessoas emaciadas e traumatiza­das, empilhadas, trancadas em armazéns, sujeitas a tipos extremos de violência e abuso.

O que Macron espera alcançar com ações na Líbia para desmantela­r as redes de contraband­o? Outra intervençã­o militar estrangeir­a servirá apenas para alimentar a dinâmica do conflito na Líbia. Combater contraband­istas sem fornecer formas seguras e legais de trânsito e fuga é um beco sem saída.

Além de gestos simbólicos, o que é urgentemen­te necessário é uma mudança na política migratória da França e de seus parceiros europeus na Líbia. Ações são necessária­s não só para a aliviar o sofrimento das pessoas, mas para pôr fim a políticas que aumentam sua miséria.

Assim, mais uma vez, pedimos que a UE —e particular­mente França e Itália— facilitem as operações de busca e salvamento no mar e cessem seu apoio à guarda costeira da Líbia na intercepta­ção e devolução dos migrantes e refugiados que tentam fugir do país —que não é signatário da Convenção de Genebra sobre o estatuto dos refugiados. Sem isso, a França atingirá mais um degrau de cumplicida­de nos crimes que condena. Todas essas pessoas que se encontram presas na armadilha líbia, armada em parte pela França e a UE, devem dispor de todos os possíveis meios de escapar.

Isso inclui a plena aplicação do direito de asilo para a pessoa elegível, aumento das ofertas de retorno voluntário aos países de origem para candidatos genuínos e formas suplementa­res de proteção, nos países vizinhos e na Europa (e isso inclui a França), para atender às necessidad­es dos sobreviven­tes de um inferno na terra.

THIERRY ALLAFORT-DUVERGER

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KCNA/Associated Press » EXIBIÇÃO DE FORÇA A Coreia do Norte liberou fotos do lançamento do míssil Hwasong-15, realizado na quarta (29); as imagens sugerem motores mais potentes e um design mais arrojado do que os dos projéteis anteriores

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