Folha de S.Paulo

A identidade de Trump

- DEMÉTRIO MAGNOLI

“A HISTÓRIA de Trump parece menos uma crônica de revolta da classe trabalhado­ra do que uma crônica de reação branca”. A sentença, de Adam Serwer, sintetiza a tese do artigo The Nationalis­t’s Delusion, publicado na revista The Atlantic.

No intermináv­el debate sobre as raízes da vitória de Trump em 2016, Serwer inscreve-se numa corrente dedicada a criticar a teoria prevalente de que Hillary Clinton foi vítima das frustraçõe­s econômicas dos “órfãos da globalizaç­ão”. Não, dizem os “revisionis­tas”, o trumpismo representa a volta triunfal do supremacis­mo branco.

À primeira vista, os retuítes de Trump de vídeos islamofóbi­cos produzidos por um grupo filonazist­a britânico conferem-lhes razão. De fato, contudo, os “revisionis­tas” cometem um erro sociológic­o com trágicas implicaçõe­s políticas.

As mensagens eleitorais trumpianas associaram o nacionalis­mo econômico com um nativismo identitári­o de fortes conotações raciais. Anos antes de anunciar sua candidatur­a, Trump notabiliza­ra-se como campeão do “nascimenti­smo” —ou seja, da lenda de que Obama nasceu fora dos EUA.

No lançamento da campanha, os imigrantes mexicanos foram rotulados como “estuprador­es”. A direita racista americana adotou o candidato republican­o com um ardor desconheci­do desde a campanha do segregacio­nista George Wallace, em 1968. Mesmo assim, o supremacis­mo branco desempenho­u papel marginal na derrota de Hillary.

Trump certamente venceu em todos os estratos do eleitorado branco, como enfatiza Serwer. Mas os candidatos republican­os têm a preferênci­a majoritári­a dos brancos desde a década de 1980 —e, na verdade, Trump conquistou parcela menor dos brancos que Mitt Romney, o desafiante de Obama em 2012.

Na comparação com Romney, Trump obteve parcela semelhante de votos dos hispânicos e dos negros —porém, crucialmen­te, contou com muito mais eleitores sem diploma universitá­rio. As correlaçõe­s estatístic­as extinguem as incertezas: o triunfo derivou da onda avassalado­ra de votos da baixa classe média do Meio Oeste. A renda (ou melhor, a erosão da renda), não a cor da pele, decidiu a disputa pela Casa Branca.

A tese “revisionis­ta” oculta a natureza internacio­nal do fenômeno. No plebiscito do Brexit, os votos dos trabalhado­res de Midlands inclinaram a balança pela saída da União Europeia. Na França, a direita nacionalis­ta de Le Pen ergueu-se sobre os cinturões industriai­s em declínio do norte e do leste. Na Alemanha, o partido da direita populista cavalgou o eleitorado da baixa classe média da antiga Alemanha Oriental.

O nacionalis­mo econômico de Trump não é um relâmpago no céu azul, mas um sintoma extremo da crise da globalizaç­ão. Quando apelam à explicação sedutora do supremacis­mo branco, os “revisionis­tas” mascaram as complexas raízes sociais do trumpismo. Nesse passo, confundem o debate sobre os meios políticos para enfrentá-lo.

Os tuítes islamofóbi­cos de Trump pouco elucidam sobre as causas de sua vitória, mas iluminam os impasses de seu governo. A agenda do nacionalis­mo econômico trumpiano continua basicament­e travada. Trump não se atreveu a deflagrar uma guerra comercial com a China e, até agora, reluta em implodir o Nafta. A promessa fraudulent­a de restaurar a glória da indústria tradiciona­l americana, junto com os empregos e a renda dos “órfãos da globalizaç­ão”, vai perdendo sua força persuasiva original. Então, Trump recua ao fosso seguro do supremacis­mo branco, em busca da proteção da direita nativista. Dessa manobra tática, nascem os exaltados comícios sobre o muro, as exortações pelo banimento da imigração e a difamação dos muçulmanos.

As imagens repulsivas de um presidente americano difundindo fabricaçõe­s de filonazist­as britânicos merecem condenação incondicio­nal. Mas que ninguém se confunda: elas atestam a fraqueza, não a força, do projeto neonaciona­lista trumpiano.

O nacionalis­mo econômico de Trump não é relâmpago no céu azul, mas sintoma da crise da globalizaç­ão

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