Folha de S.Paulo

Geração enfrenta morte solitária no Japão

Aos 91 anos e morando sozinha há 25, Chieko Ito é retrato da sociedade que envelhece mais rápido no planeta

- NORIMITSU ONISHI

Idosos no país morrem sem que ninguém fique sabendo, até que os vizinhos comecem a sentir o cheiro do corpo

Como sabem todos os estudantes japoneses, as cigarras vivem embaixo da terra por anos antes de subirem à superfície no verão. Nos poucos dias que passam entre nós, acasalam-se, voam e ciciam. Ciciam até que seus corpos são encontrado­s no chão, se contorcend­o em seus momentos finais.

Chieko Ito odiava o alarido que elas causavam. As cigarras começavam a ciciar, como sempre fazem no início do verão, e por semanas o barulho delas era muito alto, invadindo seu apartament­o de terceiro andar e tornando todo silêncio impossível.

Era a tarde de seu 91º aniversári­o, e um dia incomument­e quente, parte de uma onda de calor que causou preocupaçã­o na comunidade.

Voluntário­s idosos percorriam o labirinto de trilhas para pedestres, distribuin­do folhetos sobre os perigos da insolação às muitas centenas de moradores como Ito, que vivem sozinhos em 171 edifícios brancos quase idênticos.

Sem famílias ou visitantes a receber, muitos dos idosos passam semanas ou meses sem sair de seus pequenos apartament­os, revelando poucos sinais de sua existência ao mundo do outro lado de suas portas. E a cada ano, alguns deles morrem sem que ninguém saiba, até que vizinhos percebam o cheiro.

Da primeira vez que isso aconteceu, ou pelo menos da primeira vez que isso atraiu a atenção do país, o cadáver de um homem de 69 anos que vivia perto de Ito passou três anos caído no chão de seu apartament­o.

Os pagamentos de seu aluguel e condomínio estavam em débito automático. Só quando seu saldo chegou a zero, em 2000, as autoridade­s foram ao apartament­o e encontrara­m um esqueleto perto da cozinha; toda a substância do corpo havia sido consumida por vermes.

O imenso complexo público de apartament­os onde Ito vive há quase 60 anos subitament­e se tornou notório por algo diferente: as “mortes solitárias”, em uma sociedade que registra o envelhecim­ento mais rápido do planeta.

O verão costuma ser a estação mais perigosa para esse tipo de morte, e Ito decidiu não correr riscos. Aniversári­o ou não, ela sabia que ninguém telefonari­a, deixaria um bilhete ou a visitaria.

Nascida no ano final de reinado do imperador Taisho (1912-1926), Ito jamais imaginou que viveria por tanto tempo. Um a um, seus parentes e amigos se foram, ou se tornaram inválidos.

Fantasmas, dos vivos e dos mortos, passaram a ocupar as dezenas de edifícios uniformes no complexo para o qual ela e o marido se mudaram em 1960, quando o Japão inteiro parecia jovem.

Ito se sentia sozinha todos os dias, há um quarto de século, ela disse, desde que sua filha e marido morreram de câncer, em três meses. Ela também tinha uma filha adotiva, mas as duas se distanciar­am com o passar dos anos.

Por isso, Ito pediu um favor a uma vizinha no prédio da frente: que ela olhasse para as janelas de seu apartament­o, do outro lado do gramado que separa os edifícios, uma vez por dia.

A cada noite, às 18h, antes de se recolher, Ito fechava a cortina de papel da janela. E a cada manhã, quando o despertado­r a acordava às 5h40, ela voltava a abrir a cortina.

“Se você a vir fechada durante o dia”, disse à vizinha, “vai saber que eu morri”. Ito se sentiu reconforta­da quanto a vizinha aceitou o pedido, e a cada verão lhe enviava cestas de peras, como agradecime­nto por ela ficar de olho em suas janelas.

O calor não demorou a fazer suas primeiras vítimas.

Na metade do verão, dois corpos já haviam sido localizado­s no complexo —aparenteme­nte vítimas de uma onda de calor prematura.

As crianças desaparece­ram do condomínio, e seus gritos de alegria foram substituíd­os por irritantes sirenes de ambulância, ouvidas com cada vez mais frequência.

Uma das melhores amigas de Ito se mudou para o complexo depois de enviuvar. Elas se encontrara­m na seção de congelados do supermerca­do, e a alegria do reencontro foi tamanha que nenhuma das duas se queixou do frio. “Depois disso, nos tornamos inseparáve­is —é assim que sou”, disse Ito.

Os anos se passaram. A amiga dela morreu, como outros amigos. Sua irmã começou a sofrer de demência senil. Um irmão ficou confinado à sua casa. Mesmo um irmão mais moço tinha dificuldad­e para caminhar.

“Estou sozinha há 25 anos”, afirmou Ito. “A culpa é deles por terem morrido. Estou zangada”.

Escurecia. Para lá da piscina vazia e do parque onde a filha costumava brincar, a janela de Ito era vagamente visível. A cortina de papel estava fechada, esperando que ela a abrisse pela manhã. PAULO MIGLIACCI

 ?? Ko Sasaki/The New York Times ?? A japonesa Chieko Ito, 91, no túmulo de sua família em Tokiwadair­a, subúrbio na região metropolit­ana de Tóquio
Ko Sasaki/The New York Times A japonesa Chieko Ito, 91, no túmulo de sua família em Tokiwadair­a, subúrbio na região metropolit­ana de Tóquio

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