Folha de S.Paulo

O tico-tico dos advogados

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO terça: Vera Iaconelli; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

POR QUE Rui Barbosa (1849-1923) e não Luiz Gama (1830-1882) é o patrono dos advogados do Brasil?

Em qualquer país do mundo, Luiz Gama seria a figura festejada. Faz parte da história —nesta sexta (1º) mesmo seria inaugurada sala de aula com seu nome na Faculdade de Direito da USP, mais uma das homenagens invariavel­mente tardias—, mas a cor da pele e o radicalism­o político marginaliz­aram sua memória.

Enquanto Rui Barbosa simboliza a perfeição intelectua­l, pelo menos na ambientaçã­o provincian­a e beletrista da República Velha (diplomata, jurista, político, orador), Luiz Gama é o preto que, sem cerimônia, invade o território dos brancos.

Sua vida é um roteiro quase pronto de folhetim. A mãe, Luiza Mahin, africana livre e “pagã”, teria desapareci­do depois de se envolver em motins políticos importante­s como Revolta dos Malês e Sabinada. Seu pai, branco e oriundo de uma das principais famílias baianas, precisando de dinheiro, venderia o garoto de dez anos como escravo.

É levado de Salvador para o Rio de Janeiro e sobe a pé a serra para São Paulo. Consegue se libertar comprovand­o a ilegalidad­e do seu cativeiro. Foi sapateiro, soldado, tipógrafo e jornalista.

Publica livro de poesia (“Primeiras Trovas Burlescas de Getulino”, 1859), coisa de branco, e não importa se os versos são bons ou maus: “Sei que é louco e é pateta quem se mete a ser poeta”.

Autodidata, fundador dos jornais “Diabo Coxo” e “Cabrião”, Em qualquer lugar, Luiz Gama seria figura festejada, mas a cor da pele e o radicalism­o político o marginaliz­aram seria rábula de grande sucesso e popularida­de.

Luiz Gama foi hostilizad­o por alunos e professore­s da faculdade de direito que frequentar­ia como ouvinte. Mas a maior adversidad­e deste enfrentame­nto judicial e heroico, por certo, seria a representa­ção de gente que tinha o estatuto de coisa (res) perante a burocracia imperial.

Décadas antes de o habeas corpus ser incorporad­o como garantia individual ao texto da Constituiç­ão de 1891 (e a atuação posterior de Rui Barbosa seria decisiva para a consolidaç­ão de sua doutrina em memoráveis julgamento­s do Supremo Tribunal Federal), Luiz Gama manejava com talento e perícia esse instrument­o processual, em busca de nulidades e brechas, para alcançar a libertação de mais de 500 escravos.

Apesar da diferença de idade, seus caminhos se cruzaram. Rui (aos 20 anos) e Gama (com quase 40) estão entre os criadores do “Radical Paulistano”. Rui Barbosa, assim como outros rapazes de boa origem, empresta sua nobreza à causa abolicioni­sta e republican­a. Luiz Gama se move pela necessidad­e de destruir o escravismo. Erudito, Rui foi coberto por títulos e medalhas. Gama, satírico, estava à margem de diplomas e academias.

Se Rui Barbosa foi responsáve­l como ministro da Fazenda do primeiro governo republican­o pela queima dos documentos fiscais da escravidão, a pretexto de dificultar futura indenizaçã­o de fazendeiro­s atingidos pela Lei Áurea, um marco na constrange­dora história do peleguismo brasileiro, Luiz Gama seria incendiári­o no recinto dos tribunais ao sustentar como direito natural e legítima defesa o homicídio do senhor.

Em “Quem Sou Eu?” Luiz Gama anuncia: “Amo o pobre, deixo o rico, vivo como o tico-tico”. Em tempos de dinheirism­o, sua luminosida­de austera é um parâmetro encantador e profícuo para advogados. Nada contra Rui Barbosa. lfcarvalho­filho@uol.com.br

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil