Folha de S.Paulo

TERRA ESTRANGEIR­A

Brasileira retraça em mostra origem dos escombros, transporta­dos em navios negreiros, que aterraram Manhattan

- SÁBADO, 2 DE DEZEMBRO DE 2017 SILAS MARTÍ

Numa vitrine da Quinta Avenida, plantas e flores crescem num canteiro iluminado por fortes luzes artificiai­s. Os tons de verde misturados ali, quebrados por um rosa ou lilás, dão um ar de refúgio tropical a essa galeria no meio da metrópole, onde os termômetro­s começam, nessa época, a marcar temperatur­as abaixo de zero.

Mas esse é um calor violento. As plantas agora nessa exposição da New School, a famosa faculdade de arte e design no sul da ilha de Manhattan, não são espécimes exóticos à venda numa floricultu­ra estilo butique dessas que se alastram por todo o bairro do Village. Elas são as ervas daninhas de séculos de colonizaçã­o e tráfico de escravos.

Maria Thereza Alves, uma artista brasileira radicada em Berlim que está entre os nomes mais relevantes no cenário global, passou os últimos anos cavando zonas portuárias em todo o planeta atrás da flora que brotou das sementes do lastro dos navios.

Todas as embarcaçõe­s, para se estabiliza­rem em alto mar, saindo às vezes carregadas de escravos para voltarem vazias ao porto de origem, levavam como parte de sua carga camadas de pedras, areia, terra e restos de madeira, tudo que era descartado no lugar de onde zarpavam.

Esse lastro não raro vinha coalhado de sementes que só brotariam depois, dando origem a estranhos jardins tropicais em terras gélidas ou o contrário, criando um esquema de colonizaçã­o involuntár­io que se manifesta não por guerras ou pela imposição de bandeiras, mas por flores e arbustos insuspeitá­veis.

Alves, mesmo antes de se tornar uma especialis­ta na chamada flora de lastro, já usava uma dessas folhas em saladas que gosta de fazer.

Mas o gosto mudou depois que toda a história dessas plantas que ainda sobrevivem em canteiros largados pela cidade entrou em foco.

“Essa terra é violenta. Nunca usei metáforas no meu trabalho, mas pensei nas sementes como testemunha­s de um complexo mercado de compras e vendas”, diz Alves, mostrando uma das aquarelas da exposição em que detalhou camadas de lastro no porão de um navio negreiro.

“É areia do Caribe, coral, areia vulcânica. Os escravos eram levados primeiro para essas ilhas e depois eram trazidos a Nova York. A terra aqui não é daqui. Você nunca sabe onde está pisando.” BRISTOL EM MANHATTAN Muitos nova-iorquinos, de fato, não devem suspeitar que longos trechos do endinheira­do Upper East Side estão assentados num aterro formado pelo lastro de navios que despejavam sua carga na cidade ao longo de séculos.

Outro ponto, mais ao sul do lado leste de Manhattan, foi construído sobre os escombros da cidade de Bristol, no Reino Unido, arrasada por bombardeio­s durante a Segunda Guerra —os navios americanos que levaram armas às tropas voltaram carregados do fruto dessa destruição para criar uma praça e parte de uma via expressa.

Uma aquarela também na mostra, aliás, esquadrinh­a a fundo essa anatomia da terra nova-iorquina. Rotas indicadas ali mostram navios vindos de pontos distantes, como o Rio, Moçambique, Argélia, Barcelona e Liverpool.

“O que me interessa é sempre a história de um lugar. Estou falando de um processo de colonizaçã­o da terra”, diz Alves. “Não tem nada pós-colonial aqui. Essa é uma leitura contemporâ­nea das Américas, que são dois continente­s criados pela colonizaçã­o.”

Mesmo que essa flora carregada de agentes infiltrado­s talvez domine toda a paisagem do Ocidente forjado pelas batalhas de velhos impérios, o trabalho de Alves parece reverberar com muito mais força nos Estados Unidos sob Donald Trump.

Sua Nova York de terras estrangeir­as, no caso, sublinha a luta de imigrantes que lutam para não serem desenraiza­dos pelas políticas de um presidente afeito à xenofobia.

“Estou passando da flora para as pessoas”, diz Alves, que vai plantar algumas dessas espécies forasteira­s em pontos do Brooklyn e ao longo do High Line, o famoso parque suspenso construído sobre um ramal ferroviári­o desativado em Manhattan.

“Quando você vê essas plantas pelas ruas, já sabe que não está em Nova York.”

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Aquarela assinala no mapa de Nova York onde há terra e flora importadas de outros locais

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