Folha de S.Paulo

Reunião de missivas é passeio para leitor

‘Cartas Brasileira­s’ traz 80 mensagens de nomes marcantes para o país, de Pero Vaz de Caminha a Renato Russo

- ALVARO COSTA E SILVA

Antologia organizada por Sérgio Rodrigues expõe intimidade­s em suporte prévio ao fim da comunicaçã­o à distância FOLHA

Um adolescent­e baiano escreve ao tio uma carta em que não deixa dúvida sobre suas inquietaçõ­es e ambições.

Aos 13 anos, lia Schopenhau­er e Nietzsche e comentário­s sobre a filosofia de Platão, Sócrates, Aristótele­s, Spinoza, Voltaire. Bolou, da noite para o dia, uma peça de teatro abordando o tema da pena de morte; sua busca era a “de um assunto invulgar, um que revolucion­asse a turma”.

Queria ser escritor para falar de sua terra. Enquanto isso, via filmes (“Uma Rua Chamada Desejo”, “Luzes da Ribalta”) e não dispensava gibis do “X-9” e do “Superman”. E, sim, pensava em namorar “cultas e inteligent­es e que não ardem pensando no topete de John Derek”. Eis um perfeito Glauber Rocha, versão 1953, pré-cinema novo.

O retrato está na antologia “Cartas Brasileira­s”, organizada pelo escritor e colunista da Folha Sérgio Rodrigues.

O livro é um banquete do passado: são 80 cartas, algumas ilustradas por fac-símiles, e dezenas de fotos acompanhad­as de breves contextos.

“Quem escreveu e recebeu cartas, e sou velho o suficiente para ter participad­o dessa era, conhece o charme incomparáv­el que elas têm”, diz Rodrigues. “Funcionam como cápsulas de tempo porque o missivista é obrigado a recriar com palavras todo um clima para a comunicaçã­o com o destinatár­io distante.”

Na escolha das missivas, predominou o ecletismo. Entre os signatário­s estão escritores, artistas e políticos, de Clarice Lispector ao padre Antônio Vieira, de Dorival Caymmi a Renato Russo, de dom Pedro 1º a Michel Temer.

Mas o maior critério foi outro: “Não aborrecer o leitor”. “A ideia era misturar famosos e anônimos, obrigatóri­as e surpreende­ntes, inéditas e já publicadas, de várias épocas e cobrindo as mais diversas atividades humanas.”

A inspiração foi “Cartas Extraordin­árias”, de Shaun Usher, coletânea internacio­nal, também editada pela Companhia das Letras.

No livro brasileiro, diz Rodrigues, seria possível propor um milhão de percursos diferentes, todos válidos: “Optei pelo impression­ismo radical, uma proposta lúdica de passeio pelo mundo das cartas”.

As muitas surpresas envolvem momentos de Elis Regina, Paulo Autran e Tarsila do Amaral, mas nenhuma supera a carta dos congregado­s marianos de São Paulo.

No auge da ditadura militar, em 1970, eles escrevem ao ministro da Justiça para reclamar que a censura andava muito branda. Queriam mais mordaça, sobretudo em telenovela­s: “Aparece ali um lado meio sadomasoqu­ista da sociedade brasileira, que goza com a opressão e que, como vemos, está bem vivo”.

Há as que não podiam faltar: o relato de Pero Vaz de Caminha a dom Manuel 1º, em maio de 1500 —“a carta mais famosa da história do Brasil e das menos lidas”, anota Rodrigues—, e o testamento do suicida Getúlio Vargas.

Mário de Andrade, nosso mais prolífico missivista, se faz presente ao desaconsel­har, ainda que com carinho, um jovem poeta a desistir das musas. Mesmo depois de morto, Mário continuou a receber correspond­ência, como prova um saboroso texto de Hermínio Bello de Carvalho.

Antes de iniciar a recolha do material, o organizado­r não fazia ideia de que, em 1925, Albert Einstein, já então uma lenda viva, tivesse escrito ao comitê do Nobel, após ter passado uma semana no Rio, para indicar o marechal Rondon ao prêmio da Paz.

Para Rodrigues, a sinceridad­e é comum à maioria dos textos. Ele elege dois exemplos: “Quando Aluísio Azevedo escreve que ‘Vigo é um Maranhão piorado’, é opinião que jamais exporia em público, até porque estava na Espanha em missão diplomátic­a”.

O mesmo se vê, afirma, “quando Jorge Amado diz a Saramago, a propósito do Nobel de literatura a Kenzaburo Oe, que ‘um japonês nos atropelou’. Uma declaração pública soaria deselegant­e”.

Para o escritor, elas desempenha­m papel parecido ao dos vazamentos de áudio. Seria possível, aliás, um livro intitulado “E-mails Brasileiro­s”?

“Por mais que a comunicaçã­o nesse meio seja mais cifrada, não nego que possa sobreviver algo da correspond­ência eletrônica que interesse no futuro.”

 ??  ?? Clarice Lispector nos anos 1950, nos EUA; livro resgata carta dela de 1942 a Getúlio Vargas solicitand­o sua naturaliza­ção
Clarice Lispector nos anos 1950, nos EUA; livro resgata carta dela de 1942 a Getúlio Vargas solicitand­o sua naturaliza­ção

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