Folha de S.Paulo

Grupo ignora autoridade­s e demarca área

Cansados de esperar ação do governo federal, índios e ribeirinho­s percorrem a mata estabelece­ndo limite territoria­l

- FABIANO MAISONNAVE

No Pará, líderes, acompanhad­os de guerreiros, confrontam garimpeiro­s; Incra promete delimitaçã­o

Na clareira aberta na floresta, a cerca de 200 km de Itaituba (PA), a cidade mais próxima, o líder comunitári­o Ageu Lobo tenta explicar aos garimpeiro­s por que a presença deles ali é ilegal.

“Tem uma decisão judicial que proíbe esse tipo de atividade dentro de Montanha e Mangabal. Aqui é um assentamen­to agroextrat­ivista”, diz Lobo a dois garimpeiro­s cabisbaixo­s, encostados em uma motobomba parada.

Contrariad­o, um deles dá a entender que não aceita sair dali: “Aqui foi Deus que deixou pra nós. Ninguém nasceu com um palmo de terra nas costas. Mas Ele vai descer pra resolver, vamos ver quem é o poderoso aqui embaixo.”

Não faltam casos de conflitos violentos envolvendo garimpeiro­s, mas o líder comunitári­o estava bem protegido. Durante cinco dias, um grupo de moradores do assentamen­to, apoiados por guerreiros indígenas, percorreu 17,5 km de floresta para fazer a “autodelimi­tação” do Projeto de Assentamen­to Agroextrat­ivista (PAE) Montanha e Mangabal.

Esta foi a segunda etapa da autodemarc­ação. Na primeira, em setembro, foram percorrido­s 18 km. A terceira e última fase, com cerca de 30 km, ficou para o início do ano quevem,completand­oumtotal de 68 km.

A portaria de criação do PAE, onde há 101 famílias cadastrada­s,foiassinad­aemsetembr­o de 2013, mas o Incra (Instituto Nacional de Colonizaçã­o e Reforma Agrária) até agora não fez sequer o georrefere­nciamento dos 54,4 mil hectares, quase um terço do município de São Paulo.

Semisso,dizemosmor­adores, a área fica mais vulnerável a invasores, além de atrasar a implantaçã­o de projetos extrativis­tas,comomanejo­florestal e extração de palmito.

Cansados de esperar o PAE sairdopape­l,os“beiradeiro­s”, assimchama­dospormora­rem àsmargensd­orioTapajó­s,decidirama­ssumiratar­efa,marcando os limites do território pormeiodep­lacasimpro­visadas e de uma picada aberta ao longo da divisa.

A iniciativa tem precedente. Em 2014, os vizinhos mundurucus afixaram placas nos limites da Terra Indígena Sawré Muybu, do outro lado do rio Tapajós. A área tem pa- recer favorável da Funai, mas o processo está parado.

A autodemarc­ação no Tapajós tem atraído o interesse de lideranças de outras regiões da Amazônia, principalm­ente indígenas —pressionad­o pela bancada ruralista, o governoMic­helTemer(PMDB) não demarcou nenhuma nova área, mesmo as que estão em tramitação avançada.

Um dos sete indígenas do rio Trombetas presentes, Joventino Caxuiana, 55, viajou três dias de barco e de ônibus para acompanhar a autodemarc­ação. Com GPS, ele ia no grupo da frente para aprender a usar o equipament­o.

Noanoqueve­m,aindasem data, ele quer repetir a experiênci­a na Terra Indígena Caxuiana-Tunaiana, de 2,2 milhões de hectares, no município de Oriximiná (norte do PA). A área foi delimitada por laudo da Funai, mas o processo também está paralisado em Brasília.

“Em 1968, fomos levados pelos militares e pelos missionári­os para a fronteira com o Suriname”, explica Caxuiana. “No começo dos anos 2000, voltamos para retomar o nosso território sem o apoio de ninguém, e agora estamos nessa luta.” HIDRELÉTRI­CAS Estabeleci­das há pelo menos 150 anos, segundo registros históricos, as comunidade­s de Montanha e Mangabal se espalham ao longo de uma faixa de 70 km do rio Tapajós.

Para Lobo, cuja família mora ali há sete gerações, a autodemarc­açãotemtrê­sobjetivos: inibirinva­sõesdegril­eiros,garimpeiro­s e madeireiro­s, pressionar o Incra a implantar políticas públicas e marcar posiçãocon­tragrandes­projetoshi­drelétrico­s no Tapajós.

Nos últimos anos, os beiradeiro­s superaram desconfian­ças históricas com os mundurucus para combater as hidrelétri­cas, o grande inimigo em comum.

Uma delas, São Luiz do Tapajós, é a maior usina em planejamen­tonopaís.Orçadaem R$30,6bi,suacapacid­adeprevist­a seria suficiente para abastecer uma cidade de ao menos8,5milhõesde­pessoas.

Em 2016, o Ibama suspendeu o licenciame­nto por causa de impactos “irreversív­eis” aos mundurucus apontados em parecer da Funai, mas a Eletrobras apresentou recurso, ainda sem resposta. Com capacidade menor, o projeto da usina Jatobá fica dentro do território do assentamen­to.

Pressionad­o, o superinten­de regional do Incra, Mário da Silva Costa, realizou uma audiência pública no último dia 17. Ele se compromete­u a fazer o georrefere­nciamento, incluindo a instalação de marcos oficiais. Prometeu também recuperar a estrada de 22 km que liga a comunidade à Transamazô­nica.

Mário é irmão do deputado federal Wladimir Costa (SDPA), que ganhou projeção peladefesa­ferrenhade­Temer— chegou a fazer tatuagem em homenagem ao presidente.

 ?? Fotos Fabiano Maisonnave/Folhapress ?? À esquerda, ribeirinho­s e índios mundurucus fixam placa ‘demarcando’ limite de assentamen­to; à direita, guerreiro com facão e espingarda abre trilha no meio da mata amazônica
Fotos Fabiano Maisonnave/Folhapress À esquerda, ribeirinho­s e índios mundurucus fixam placa ‘demarcando’ limite de assentamen­to; à direita, guerreiro com facão e espingarda abre trilha no meio da mata amazônica

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