Grupo ignora autoridades e demarca área
Cansados de esperar ação do governo federal, índios e ribeirinhos percorrem a mata estabelecendo limite territorial
No Pará, líderes, acompanhados de guerreiros, confrontam garimpeiros; Incra promete delimitação
Na clareira aberta na floresta, a cerca de 200 km de Itaituba (PA), a cidade mais próxima, o líder comunitário Ageu Lobo tenta explicar aos garimpeiros por que a presença deles ali é ilegal.
“Tem uma decisão judicial que proíbe esse tipo de atividade dentro de Montanha e Mangabal. Aqui é um assentamento agroextrativista”, diz Lobo a dois garimpeiros cabisbaixos, encostados em uma motobomba parada.
Contrariado, um deles dá a entender que não aceita sair dali: “Aqui foi Deus que deixou pra nós. Ninguém nasceu com um palmo de terra nas costas. Mas Ele vai descer pra resolver, vamos ver quem é o poderoso aqui embaixo.”
Não faltam casos de conflitos violentos envolvendo garimpeiros, mas o líder comunitário estava bem protegido. Durante cinco dias, um grupo de moradores do assentamento, apoiados por guerreiros indígenas, percorreu 17,5 km de floresta para fazer a “autodelimitação” do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Montanha e Mangabal.
Esta foi a segunda etapa da autodemarcação. Na primeira, em setembro, foram percorridos 18 km. A terceira e última fase, com cerca de 30 km, ficou para o início do ano quevem,completandoumtotal de 68 km.
A portaria de criação do PAE, onde há 101 famílias cadastradas,foiassinadaemsetembro de 2013, mas o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) até agora não fez sequer o georreferenciamento dos 54,4 mil hectares, quase um terço do município de São Paulo.
Semisso,dizemosmoradores, a área fica mais vulnerável a invasores, além de atrasar a implantação de projetos extrativistas,comomanejoflorestal e extração de palmito.
Cansados de esperar o PAE sairdopapel,os“beiradeiros”, assimchamadospormorarem àsmargensdorioTapajós,decidiramassumiratarefa,marcando os limites do território pormeiodeplacasimprovisadas e de uma picada aberta ao longo da divisa.
A iniciativa tem precedente. Em 2014, os vizinhos mundurucus afixaram placas nos limites da Terra Indígena Sawré Muybu, do outro lado do rio Tapajós. A área tem pa- recer favorável da Funai, mas o processo está parado.
A autodemarcação no Tapajós tem atraído o interesse de lideranças de outras regiões da Amazônia, principalmente indígenas —pressionado pela bancada ruralista, o governoMichelTemer(PMDB) não demarcou nenhuma nova área, mesmo as que estão em tramitação avançada.
Um dos sete indígenas do rio Trombetas presentes, Joventino Caxuiana, 55, viajou três dias de barco e de ônibus para acompanhar a autodemarcação. Com GPS, ele ia no grupo da frente para aprender a usar o equipamento.
Noanoquevem,aindasem data, ele quer repetir a experiência na Terra Indígena Caxuiana-Tunaiana, de 2,2 milhões de hectares, no município de Oriximiná (norte do PA). A área foi delimitada por laudo da Funai, mas o processo também está paralisado em Brasília.
“Em 1968, fomos levados pelos militares e pelos missionários para a fronteira com o Suriname”, explica Caxuiana. “No começo dos anos 2000, voltamos para retomar o nosso território sem o apoio de ninguém, e agora estamos nessa luta.” HIDRELÉTRICAS Estabelecidas há pelo menos 150 anos, segundo registros históricos, as comunidades de Montanha e Mangabal se espalham ao longo de uma faixa de 70 km do rio Tapajós.
Para Lobo, cuja família mora ali há sete gerações, a autodemarcaçãotemtrêsobjetivos: inibirinvasõesdegrileiros,garimpeiros e madeireiros, pressionar o Incra a implantar políticas públicas e marcar posiçãocontragrandesprojetoshidrelétricos no Tapajós.
Nos últimos anos, os beiradeiros superaram desconfianças históricas com os mundurucus para combater as hidrelétricas, o grande inimigo em comum.
Uma delas, São Luiz do Tapajós, é a maior usina em planejamentonopaís.Orçadaem R$30,6bi,suacapacidadeprevista seria suficiente para abastecer uma cidade de ao menos8,5milhõesdepessoas.
Em 2016, o Ibama suspendeu o licenciamento por causa de impactos “irreversíveis” aos mundurucus apontados em parecer da Funai, mas a Eletrobras apresentou recurso, ainda sem resposta. Com capacidade menor, o projeto da usina Jatobá fica dentro do território do assentamento.
Pressionado, o superintende regional do Incra, Mário da Silva Costa, realizou uma audiência pública no último dia 17. Ele se comprometeu a fazer o georreferenciamento, incluindo a instalação de marcos oficiais. Prometeu também recuperar a estrada de 22 km que liga a comunidade à Transamazônica.
Mário é irmão do deputado federal Wladimir Costa (SDPA), que ganhou projeção peladefesaferrenhadeTemer— chegou a fazer tatuagem em homenagem ao presidente.