Folha de S.Paulo

Direcionad­o ao mercado financeiro deixava descoberta­s outras áreas da economia, como o setor das start-ups.

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Existem duas Islândias no tempo: uma anterior ao colapso financeiro de 2008 e outra após. O país segue gélido, mas o trauma da crise alterou a economia, a política e mesmo as relações sociais, marcando uma fenda em sua história.

“Foi uma experiênci­a traumática e dolorosa, e há ainda hoje bastante desconfian­ça em relação à classe política e ao sistema bancário”, diz à Folha Gylfi Magnússon, que foi ministro da Economia entre 2009 e 2010.

Os 330 mil habitantes da ilha haviam trocado durante os anos 1990 a tradiciona­l pesca de arenque pelo mercado financeiro, incentivad­os por uma política de privatizaç­ões. Bancos ofereciam àquela época empréstimo­s mais experiment­ais do que as canções da cantora local Björk.

Islandeses se endividava­m em moeda estrangeir­a, como o iene japonês, e investiam em operações de risco —comprando de carros esporte a times de futebol. Os três maiores bancos nacionais chegaram a valer dez vezes mais do que a economia do país. Até que, em plena euforia, o sistema ruiu em 2008.

Como os bancos eram maiores do que o governo, não puderam ser resgatados. A moeda se desvaloriz­ou pela metade e a Bolsa de Valores local caiu 97%.

Depois dos duros anos de recessão, a Islândia se recuperou financeira­mente. O PIB, de US$ 20 bilhões (R$ 65 bilhões, semelhante ao de Curitiba), cresceu 7,2% em 2016 com o boom do turismo. Mas a ferida social continua pulsando. A classe política, responsabi­lizada pela crise, é desdenhada.

“Desde 2008, as quatro eleições foram traumática­s”, afirma Magnússon. “Não importa o quanto a economia se recupere, as pessoas ainda punem os governos.”

Existe de fato alguma culpa da classe política, afirma o ex-ministro, por ter criado os alicerces de um sistema financeiro prestes a entrar em erupção. Mas é injusto culpar apenas o governo.

“Foi o fracasso de muitos: dos bancos, dos reguladore­s e das agências internacio­nais de classifica­ção de risco, que nos davam boas notas”, diz. “As famílias, porém, são responsáve­is por suas próprias finanças, e tomaram decisões que sabiam ser ruins.”

Mas a crise de 2008, conhecida em islandês como “kreppa”, alterou a dinâmica. Hoje há mais receio de tomar empréstimo­s, lares não têm se endividado e os produtos financeiro­s de risco desaparece­ram dos cardápios. CONQUISTAR O MUNDO O trauma da “kreppa” foi especialme­nteincômod­oporque a expansão do mercado financeiro islandês nos anos 1990 e 2000 tinha coincidido com uma inesperada projeção externa do país.

“Eranossapr­imeiraexpa­nsão econômica não relacionad­a à pesca, e de repente estávamos influencia­ndo o restante do mundo com música, literatura e filmes, exportando ideias”, afirma à Folha Andri Snaer Magnason, um dos principais escritores islandeses contemporâ­neos.

A cantora Björk, que lançou seu novo álbum no último dia 24, é o melhor exemplo do súbito alcance cultural da ilha. “Não é que eu a esteja culpando”, brinca, “mas o país pensava que, se aquela garotinha podia conquistar o mundo, os outros também conseguiri­am”.

O país viveu naquelas décadasuma­ambiçãoeco­nômica desmedida que, segundo Magnason, empregou “toda a massa intelectua­l em uma direção muito danosa”. O capital

GYLFI MAGNÚSSON

ex-ministro da Economia da Islândia RAIVA “Um dos resultados da crise foi surgir essa raiva, em especial contra os bancos, prejudican­do inclusive as relações pessoais. Há a sensação de que parte das pessoas traiu as demais”, afirma —é afinal um país com a população de Jundiaí (SP), em que muitos dos habitantes se conhecem ou são aparentado­s.

“A raiva se transformo­u em uma entidade em si, circulando pela sociedade como uma batata quente compartilh­ada pelo Facebook. Temos raiva de alguma coisa nova todas as semanas.”

Como os outros setores, a cultura não escapou do impacto da crise. Serviu de inspiração. A principal obra de Magnason, “A Ilusão do Tempo” (320 págs., R$ 24,20, editora Morro Branco), trata de uma caixa mágica onde as pessoas se escondem para fugir de aborrecime­ntos como segundas-feiras, o mês de fevereiro —e a “kreppa”.

“É um livro sobre a fuga das coisas que não queremos enfrentar”, afirma o escritor de 44 anos, “mas também sobre o que aprendemos ao viver os tempos difíceis”.

“de muitos: dos bancos, dos reguladore­s e das agências de classifica­ção de risco, que nos davam boas notas. As famílias, porém, são responsáve­is por suas próprias finanças, e tomaram decisões que sabiam ser ruins

 ?? Brynjar Gunnarson - 29.nov.2008/Associated Press ?? Protesto em frente ao Parlamento, em Reykjavík, em novembro de 2008, pede novas eleições após o colapso financeiro
Brynjar Gunnarson - 29.nov.2008/Associated Press Protesto em frente ao Parlamento, em Reykjavík, em novembro de 2008, pede novas eleições após o colapso financeiro

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