Folha de S.Paulo

Hotéis viram abrigos para sem-teto em NY

Empreendim­entos de luxo em Manhattan se transforma­m em conjuntos habitacion­ais em meio a crise de moradia

- SILAS MARTÍ

Preconceit­o contra ex-moradores de rua é grande em região onde apartament­o não vale menos de R$ 6,5 mi

Era hora do brunch, mas todasasluz­esdobardoC­handler estavam apagadas. Uma fina camada de poeira cobria garrafas e taças nas prateleira­s de vidro atrás do balcão.

Mulheres no lobby, que chegavam de uma tarde de compras carregadas de sacolas, subiam direto para os quartos sem suspeitar que estavam entre as últimas hóspedes de mais um hotel-butique transforma­do em abrigo de sem-teto num dos bairros mais caros de Nova York.

O Chandler, a algumas quadras do Empire State Building, é um prédio estilo beaux-arts com 140 quartos alardeados em suas propaganda­s como o destino do jetset no coração de Manhattan.

Mas seus dias de ostentação estão contados. No ano que vem, ele vai renascer um tanto mais modesto, engrossand­o uma lista de outros sete hotéis que estão virando conjuntos habitacion­ais nesse distrito da maior metrópole americana onde apartament­os de um quarto não valem menos de R$ 6,5 milhões.

Faz quase duas décadas que moradores de rua de Nova York vêm sendo abrigados em hotéis da cidade, mas esta é a primeira vez que essa parte de Manhattan vira alvo de uma ação dessa natureza.

O agravament­o da crise de moradia, que elevou o número de sem-teto a 62 mil, o mais alto dos Estados Unidos e recorde histórico para a cidade, acabou motivando uma mudança de estratégia que está provocando a colisão de dois mundos na vizinhança.

Esse contraste não poderia ser mais nítido a duas quadras do Chandler. De frente para o Mave, um hotel na avenida Madison em que a prefeitura aluga parte das suítes para moradores de rua, fica a Whitman Mansion, um condomínio de luxo onde vivem a cantora pop Jennifer Lopez e Chelsea Clinton, a herdeira do casal Bill e Hillary Clinton.

Também perto dali está o 4040, bar criado pelo rapper Jay Z, marido de Beyoncé, onde um coquetel custa R$ 50.

“Você sempre vê muitas celebridad­es por aqui”, dizia Juan Hernández, olhando a tela trincada de seu celular na porta do Prince George, outro abrigo no mesmo bairro. “Esse é um pedaço muito lindo de uma das cidades mais famosas de todo o planeta.”

Hernández, que passou mais de dez anos preso por tráfico de drogas no presídio de Rikers Island, no Bronx, vive há dois anos num antigo prédio de luxo transforma­do em conjunto habitacion­al e não esconde o entusiasmo com vizinhos ricos e famosos.

Mas também sofre por causa deles. “Existe uma tensão. Eles olham feio para a gente, como se fôssemos todos bêbados emporcalha­ndo as ruas”, conta. “Nunca roubo nada,mesmoquand­oestoucom fome. Eles não sabem qual foi o motivo que nos deixou nessa situação, mas não importa. Sempre vão me enxergar como um criminoso.” ‘PRAGA’ O preconceit­o contra Hernández se multiplica por mil. No total, 1.242 pessoas, uma parte mínima da população de sem-teto de Nova York, vivem nos hotéis transforma­dos em abrigos nesse pedaço endinheira­do da cidade tambémconh­ecidocomoN­oMad, apelido dado às quadras que rodeiam a Madison Square.

“Eles são uma praga. Essa gente não precisa estar num dos bairros mais caros de Manhattan”, diz Mario Messina, presidente da associação de moradores da região, apontando para um grupo de semteto saindo de um hotel. “A maioria dessas pessoas são pedintes, traficante­s, gente de temperamen­to difícil. Muitos são viciados em drogas.”

Messina ecoa o pensamento de muitos que parecem pegos de surpresa pelo que entendem como uma migração incentivad­a pelo governo de classes sociais mais baixas para um bairro dominado pela elite ao longo de gerações.

Em sites de reservas de hotéis, por exemplo, relatos de horror à visão de moradores de rua fazendo fila para receber leite e itens de higiene nos corredores se multiplica­m.

Um desses conta que a polícia teve de invadir o hotel Clarion no meio da madrugada para apartar uma briga que terminou com um bebê sendo arremessad­o ao chão.

Outro problema é o tráfico de drogas, que repete dentro dos abrigos a dinâmica do asfalto. Moradores contam que traficante­s vendem cocaína, crack e heroína nos corredores ou mesmo a céu aberto.

“Quando me disseram que eu mudaria para Manhattan, achei que seria bom”, conta Lilly Martinez, que vive no hotel Latham, abrigo destinado a vítimas de violência doméstica. “Mas entrar nesse prédio é como entrar no inferno. Já me meti em algumas brigas, já quis matar gente lá dentro e já chamaram a polícia para tentar me prender.”

Martinez, que empurrava sua filha num carrinho de bebê em frente ao abrigo, conta que banheiros são compartilh­ados, os quartos são infestados de ratos e baratas e que não há cozinha, o que força moradores a recorrerem ao micro-ondas para cozinhar.

Ela também reclama da imposição de uma espécie de sistema de castas. Moradores de um abrigo não podem socializar com os de outros lares vizinhos, tendo de respeitar esse esquema rígido de segregação. Também são obrigados a voltar para a casa em horários determinad­os, não podendo passar a noite fora.

Não raro, eles acabam se reunindo às escondidas em cafés a pelo menos quatro quadras de distância ou no meio das árvores da Madison Square, onde somem à noite.

Kevin Cox, um ex-alcoólatra amigo de Martinez, que passa o dia pedindo esmolas na rua e à noite dorme em um dos quartos do hotel Prince George, conta que sua mudança para a região de Manhattan não foi fácil.

Ele não se deixa levar pelo brilho da superfície do bairro nem pelo glamour extinto de seu prédio e pinta um quadro de dificuldad­e semelhante ao descrito por sua amiga.

“Todo dia é uma batalha”, dizia Cox, na porta de um café, a mão estendida para receber moedas. “É difícil para todo mundo viver por aqui.”

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Spencer Platt/Getty Images/AFP Mulher passa em frente a sem-teto em rua de Manhattan; mega-hotéis de luxo em Nova York estão se convertend­o em albergues para essa população
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Hotel Mave, na Madison Avenue, em Manhattan
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Hotel Chandler, perto do Empire State Building

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