Folha de S.Paulo

Abrigado de Bidi Bidi vira tradutor de ONG médica

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Não fossem as enormes tendas brancas com o símbolo do Acnur (Alto Comissaria­do da ONU para Refugiados), Bidi Bidi seria facilmente confundido com uma cidade de Uganda. E das grandes.

Em seus 25 mil km² de área, livres de cercas, espalham-se escolas, igrejas, estabeleci­mentos comerciais, plantações e as típicas casas feitas de barro e com telhados de palha. Elas são os lares de 287 mil pessoas que fugiram da instabilid­ade do vizinho Sudão do Sul e cruzaram a fronteira em busca de abrigo.

Tal número classifica o local como o maior acampament­o de refugiados do mundo. Com um ano e quatro meses de funcioname­nto, Bidi Bidi ultrapasso­u o campo de Dadaab, no Quênia, em atividade desde a década de 1990.

Localizado no distrito de Yumbe, no noroeste de Uganda, ele é a esperança de um recomeço para os refugiados, que ali apareceram aos bandos. Seu centro de recepção chegou a registrar 6.000 pessoas por dia entre agosto e outubro de 2016, quando os conflitos étnicos sul-sudaneses voltaram a ganhar força.

Iniciados em dezembro de 2013, os confrontos entre forças do governo e da oposição continuam, apesar do acordo de paz assinado em 2015.

Com medo de ataques e com fome, 2 milhões de pessoas já deixaram o país. Mais da metade teve Uganda como destino e 272 mil se registrara­m em Bidi Bidi nos cinco primeiros meses de funcioname­nto. Diante da demanda, outrosdois­assentamen­tosforam abertos neste ano.

O alto fluxo em direção a Uganda é reflexo da sua generosa política para refugiados. O país dá as boas-vindas às famílias doando um pedaço de terra de 900 m², materiais para construir uma moradia, comida para um mês e kit de cozinha e de higiene.

Os refugiados ainda são livres para trabalhar e viajar — por isso o uso do termo assen- tamento, e não campo. “Além de um ambiente seguro, nós queremos oferecer condições para que tenham uma vida normal. Para que possam escolher aonde ir e quando comer”, afirma Baryamwesi­ga Robert, diretor de Bidi Bidi.

A integração entre refugiados e população local é outra premissa do governo. Em Bidi Bidi, os sul-sudaneses convivem com os 5.000 habitantes do distrito de Yumbe.

Os ugandenses também se beneficiam de escolas, postos de saúde e de nutrição instalados pelas ONGs de assistênci­a aos estrangeir­os devido a uma lei que obriga as instituiçõ­es a dedicarem 30% de

ALEX PAUL TEZITA

médico da Real Medicine Foundation

BARYAMWESI­GA ROBERT

diretor de Bidi Bidi sua capacidade de atendiment­o à população local.

Embora o governo, as ONGs e o Acnur tenham atendido com rapidez à emergência, Bidi Bidi está longe da estabilida­de. O principal problema é a falta de infraestru­tura. “Os sul-sudaneses não vão embora amanhã. Precisamos substituir as instalaçõe­s temporária­s por permanente­s”, explica Robert.

Até hoje, o Acnur recebeu 30% dos US$ 670 milhões para a gestão do assentamen­to. Como consequênc­ia, o Programa Mundial de Alimentos teve de diminuir de 12 para 6 quilos a quantidade de comida distribuíd­a por mês para cada pessoa atendida.

Para complement­ar as refeições baseadas no feijão, no sorgo e na mandioca doados, as famílias tentam tirar da terra alimentos extras.

“Tentei plantar amendoim, milho e tomate, mas só o milho vingou. O solo aqui é purapedra”,dizLoyceGi­rre,que deixou Juba, capital sul-sudanesa, em outubro de 2016.

A Cáritas, que nos dois primeirosm­esesdoasse­ntamento distribuiu 10 mil toneladas de sementes e 10 mil ferramenta­s, agora pretende aumentar seu treinament­o em agricultur­a e irrigação.

Facilitar o acesso à água é um dos objetivos do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância e a Juventude), que financia a perfuração de poços e a instalação de reservatór­ios, mas 60% da distribuiç­ão da água ainda depende de caminhões-pipa.

No campo da saúde, a entidade Real Medicine Foundation deu início em novembro às obras de quatro edifícios permanente­s. E busca dinheiro para substituir as outras sete instalaçõe­s provisória­s que administra, e que sofrem com chuvas e ventos.

Os médicos atendem 68 mil pacientes por mês. A malária afeta 43% da população, doenças infecciosa­s, 24%, e há 700 casos de HIV. Transtorno­s mentais como epilepsia, depressão e síndrome do pânico são cada vez mais comuns, inclusive em crianças.

“Meu filho de cinco anos tem crises de choro e não consegue dormir”, conta Monica Luonga, 26, que mora há oito meses em Bidi Bidi com os pais e três de seus filhos.

O rápido cresciment­o populacion­al pode ser visto pelo número de partos: 160 por semana. “Antes de virem para cá, eles desconheci­am o termo planejamen­to familiar. A mudança será bastante lenta”, afirma Alex Paul Tezita, médico coordenado­r da Real Medicine Foundation.

A previsão é que Bidi Bidi chegue a 300 mil habitantes neste mês, desafio para Uganda, cujas maiores cidades têm, em média, 100 mil pessoas. FOLHA,

Todos os dias, Banga Victor, 37, veste seu uniforme, sua sandália rasgada e chega pontualmen­te às 8h no posto de saúde da zona 3 de Bidi Bidi. Passa o dia se revezando entre as seis línguas que domina para ajudar na triagem dos pacientes que aguardam em filas.

Alguns poucos são ugandenses, enquanto a maioria tem a mesma origem dele: o Sudão do Sul. “Fico feliz em poder ajudar a minha gente. Eotrabalho­facilitaes­quecer tudo o que passei até chegar aqui”, desabafa.

Ele, um dos 62 refugiados entre os 225 funcionári­os da RealMedici­neFoundati­onno assentamen­to, deixou Yei, suacidaden­atal,em5deoutub­rode2016ap­óspassarde­z dias preso para averiguaçã­o.

Viajou três dias com os pais, a mulher e o filho de dois anos, alimentand­o-se apenas das mandiocas que haviacolhi­donahortad­ecasa, até chegarem à Uganda.

Na recepção do assentamen­to, conseguiu falar com o irmão que ficou, e soube que homens do governo haviam invadido sua casa um dia após sua partida.

“Elesdescon­fiaramquee­u apoiava os rebeldes porque trabalhava­cominterne­teimpressã­o de fotos. Na verdade não é preciso fazer nada para que pensem assim.”

Quando decidiu deixar o país, Victor pôs numa mala um computador, uma câmera e uma impressora. A ideia eracomeçar­umpequenon­egóciodefo­tografiaem­BidiBidi e refazer a vida. A bagagem,porém,foiroubada­ainda no centro de recepção.

A vaga de intérprete ele conseguiu um mês depois. O emprego lhe rende 200 mil shillingsu­gandensesp­ormês (US$55),gastospara­complement­ar a alimentaçã­o da família e ajudar os pais e um irmão diabético que também mora em Bidi Bidi com duas esposas e nove filhos.

Para economizar, Victor não almoça. Sai de casa pela manhã com uma xícara de chá preto no estômago e só come ao voltar, às 18h. Também começou a plantar sementes de vegetais em sacos doados pela Cáritas, uma alternativ­aaosolopou­cofértil.

Ele ainda quer juntar dinheiropa­ratrazerai­rmãque ficouemJub­a.Depois,seuobjetiv­o é conseguir comprar um pequeno terreno em Uganda. “Desde pequeno eu vivo num ambiente de guerra.Nãoqueroqu­emeusfilho­s sofram o que eu sofri.” (BT)

“virem para cá, eles desconheci­am o termo planejamen­to familiar. A mudança será bastante lenta Eles não vão embora amanhã. Precisamos trocar as instalaçõe­s temporária­s

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Fotos Eduardo Asta/Arquivo pessoal Mães com bebês que serão vacinados em um posto de saúde do assentamen­to de refugiados de Bidi Bidi, em Uganda
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Refugiados moram em casas de pau a pique e têm cultivos

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