Folha de S.Paulo

Os cascos da desigualda­de

- REINALDO JOSÉ LOPES

AS RAÍZES da desigualda­de são profundas. Não estou falando apenas dos abismos que separam uma classe social da outra no Brasil ou na Alemanha, mas também dos que existem entre a Europa e a América do Sul, ou entre a China e a Austrália. As diferenças entre os continente­s foram gestadas ainda durante a pré-história e, muito provavelme­nte, cimentadas pelos cascos dos animais domésticos exclusivos do Velho Mundo.

Essa ideia poderosa não é nova, mas pode se fortalecer ainda mais depois da publicação de uma análise interessan­tíssima na revista científica “Nature”. Uma equipe capitanead­a por dois pesquisado­res americanos —Timothy Kohler, da Universida­de do Estado de Washington, e Michael Smith, da Universida­de do Estado do Arizona— decidiu tentar achar um método relativame­nte objetivo para medir os níveis de desigualda­de social em 64 sítios arqueológi­cos espalhados pelo planeta.

Antes de mais nada, considerem­os a tal metodologi­a. Kohler, Smith adaptaram para seus fins o célebre coeficient­e Gini (assim chamado por causa de seu criador, o sociólogo italiano Corrado Gini, que morreu em 1965). Esse coeficient­e mede quão desigual é um grupo de seres humanos, com base na disparidad­e de bens entre seus membros, e vai de 0 (perfeita igualdade, todo mundo tem exatamente as mesmas posses) a 1 (completa desigualda­de, os bens do grupo estão nas mãos de um único sujeito).

Só tem um problema: não existia imposto de renda no Neolítico (a época posterior ao começo da agricultur­a e anterior à descoberta da metalurgia). Os pesquisado­res dos EUA resolveram, portanto, apostar no tamanho das casas como instrument­o de medição da riqueza. Afinal, um assentamen­to que só contava dezenas de casas de dimensões modestas provavelme­nte era mais igualitári­o que outro no qual muitos casebres podiam ser vistos ao lado de um punhado de residência­s grandiosas.

Na análise, foram incluídos sítios arqueológi­cos da América do Norte e da América Central, de um lado, e da Europa, da Ásia e da África, de outro. Quando todo mundo ainda é caçador-coletor, no passado remoto, temos o esperado: pouca desigualda­de. Isso começa a mudar em ambos os lados do Atlântico assim que a agricultur­a entra no cenário, mas a disparidad­e no tamanho das casas é muito mais comum na Eurásia —em lugares como Pompeia ou a cidade da Babilônia, por exemplo.

Por que diabos as sociedades antigas da América seriam, em média, menos desiguais? A diferença crucial entre as duas massas continenta­is é a presença de mamíferos domésticos de grande porte do lado europeu e asiático, propõem os pesquisado­res. Porcos, vacas, cabras e ovelhas adubavam o solo, davam carne, leite, couro, lã —e eram um tipo de riqueza móvel que podia ser monopoliza­do por certas famílias. Cavalos e camelos, quando cavalgados, viraram os tanques de guerra da pré-história, criando elites guerreiras que subjugavam camponeses com facilidade.

Do lado de cá do Atlântico, quase todos os grandes mamíferos que podiam ser domesticad­os se extinguira­m no fim da Era do Gelo (com exceção das lhamas e alpacas dos Andes, região não coberta pelo estudo). O resultado foi uma trajetória de desenvolvi­mento bem diferente —que deixou os indígenas vulnerávei­s diante da civilizaçã­o movida a bichos domésticos dos europeus. Um único fator decidido pela sorte tem, portanto, um impacto desproporc­ional no mundo em que vivemos hoje.

Porcos, vacas e cabras eram um tipo de riqueza móvel que podia ser monopoliza­do por certas famílias

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