SAGRADO OFÍCIO
Alvo de hostilidades durante as manifestações pró-impeachment, Leticia Sabatella diz que ‘as tempestades passam’ e reflete sobre a função do teatro: ‘É uma medicina’
Em 2012, ela lançaria o documentário que resultou da experiência. O filme leva como título o nome do “Hotxuá”, espécie de “palhaço sagrado” da aldeia, que ela compara à figura do ator: “É uma realidade universal. A função do ator, da arte, de aceitação das diferenças, de integração da comunidade, de fortalecer a autoestima das pessoas”, diz.
“E também de quebrar autoritarismos, autarquias, ditaduras”, continua. “Se você tem a figura do irônico, do palhaço,doquediz,alerta,conscientiza, você consegue ter umasociedademaissaudável.
“Sempre precisei ir para algum lugar onde meu pé ficasse no chão novamente. Ainda mais depois de experimentar a fama”, afirma. Ela conta que ficou incomodada quando, ao visitar os Krahô, foi seguida por moradores da cidade vizinha e os índios perguntaram: “Por que todo mundo quer vir na aldeia? Nunca quiseram vir aqui antes”. “Isso me doeu”, diz ela ao repórter João Carneiro, depois de uma sessão da peça “A Vida em Vermelho”, em que interpreta Édith Piaf, cantando músicas dela.
Ela tira a peruca durante a entrevista, mas faz questão de encaminhar ao repórter as fotos de divulgação do espetáculo (“Não gostaria que pensem que faço a Piaf assim”). A obra, escrita por Aimar Labaki, é um encontro fictício entre a cantora francesa e o dramaturgo Bertolt Brecht, vivido pelo marido de Leticia, o também ator Fernando Alves Pinto.
A personagem ganha tons políticosnadescriçãodaatriz: “Éumamulherferidapelopatriarcado,pelomachismo,pelo poder. Por ser pobre, por ser mulher. E ela vai adoecendo,éumserhumano.Vaiadoecendo de inveja, uma inveja patológica”, diz. “Você constrói essa ausência de empatia quando você oprime, oprime, oprime, oprime.”
Ela própria diz que já foi alvo da violência machista. “Quando era adolescente, eu andava com casacões do meu avô até o pé, na rua, de noite. Não era uma coisa consciente, mas hoje eu sei por que eu fazia aquilo. Eu não gostava que as pessoas ficassem olhando o tempo inteiro, objetificando meu corpo, sabe? Você vai introduzindo como naturaiscertoscomportamentos. De resguardo, de recato, de contenção de opinião.”
“Teve um momento da minha vida em que minha voz era guardada”, conta. “Aos 46 anos, eu já não não permito que façam isso comigo, que me intimidem.”
Em julho de 2016, a atriz foichamadade“puta”porum dos manifestantes que a cercaram depois que ela passou ao lado de um protesto próimpeachment em Curitiba. A família da atriz, incluindo a filha, Clara, mora na cidade.
Nas filmagens doepisódio quepassaramacircularnainternet, ela aparece cercada de pessoas que entoam gritos como “A nossa bandeira jamais será vermelha”. Ela diz: “Vocês não são democráticos!”.
“Eu confesso… o que eu senti daquelas pessoas [foi] pena. Porque eu vi, assim, nossa… que abismo. Que falta de empatia, de conexão com o que é verdade, inclusive. Eles estão acreditando numa lavagem cerebral”.
“As tempestades vêm e passam”, continua. “Quando você vê que a vida é assim, de cavas e de cristas, de ondas, você não teme a adversidade. Claro que você se machuca, se fere, sofre. [Mas] você não teme a adversidade. É por isso que aquelas pessoas gritando... Eu não temia aquilo.”
“[A situação] não me faz sentir raiva daquelas pessoas. Me faz me defender na hora, humanamente,né?Euenfrentei,euolhavanoolhodequem tava me xingando, mesmo. Como assim, sabe?”, conta.
“O senhor não me conhece, eu sou apenas uma sombra da rua. Mas venha, sintase em casa, ponha suas dores sobre o meu coração”, prossegue a atriz, recitando uma adaptação da letra de “Milord”, de Piaf. “Eu não sou um objeto pra você usar, pra você explorar, pra me xingar. Me veja, eu sou um ser humano, como você. Isso é o que ela [Piaf] diz na obra dela”.
Passado o turbilhão político de 2016, a atriz avalia que a situação atual ainda é “revoltante”. “A gente tá vivendo um momento em que tem assassinos armados dentro de nossa casa ameaçando nossos filhos, numa metáfora bem pesada.”