Folha de S.Paulo

CRÍTICA Obra relata casos dramáticos de maneira leve

Coletânea de crônicas de tribunal, ‘Levante-se o Réu’ vale-se de linguagem avessa ao clichê e à aridez judiciária

- VICTOR HERINGER

FOLHA

Em 2014, assisti à peça “Ubu e a Comissão da Verdade”, de Jane Taylor, produzida pela Handspring Puppet Company sob direção de William Kentridge.

O espetáculo —um diálogo com “Ubu Rei”, de Alfred Jarry— encenava com bonecos as audiências da comissão que investigou violações de direitos humanos durante o apartheid, na África do Sul.

Os bonecos, objetos tão próximos ao brinquedo, davam voz a depoimento­s reais sobre o horror do regime, numa mescla que beirava o despropósi­to —na fronteira onde vivem as obras de arte.

A mesma sensação de descompass­o está em “Levantese o Réu”, de Rui Cardoso Martins, coletânea de “crônicas de tribunal” colhidas em audiências da Justiça portuguesa de 1990 a 2007. O livro reúne uma centena delas, de um total de 700, fruto de visitas ao tribunal onde se julgavam réus pegos em flagrante.

Os textos, publicados originalme­ntenojorna­l“Público”, não são reportagen­s, embora tratem de crimes reais, em toda sua terrível diversidad­e.

Aliás, tiveram uma “entrada cómica nos bastidores da imprensa”: os copidesque­s do jornal, ao toparem pela primeira vez com a “estranha narrativa”, transforma­ramna em “notícia de fait divers: quem, quando, como, porquê, tudo pela ordem clássica”. Porém são crônicas; por isso, desconfiam das ordens clássicas, não temem a ficção e assumem a figura do autor.

A reunião de crônicas em livro costuma causar interessan­tes aberrações temporais, sobretudo quando são de autores diferentes.

Neste caso, os textos são de umúnicocro­nista,masforam publicados no passado, de certa maneira para o passado, e em intervalos mais longos do que o virar de páginas.

Quando compilados, portanto, há uma espécie de compressão do tempo, dando densidade ao cotidiano do qual são feitos. Daí a impressão de retrato (da sociedade portuguesa, da natureza humana etc.) que se tem ao ler.

Entretanto, é um retrato de fotógrafo que sabe que “objetiva” é um sinônimo enganoso para a lente da câmera —o tipo de fotógrafo capaz de tomar posse do próprio olhar, tal qual o bom cronista.

O leitor brasileiro, acostumado ao estilo leve de Rubem Braga,porumlado,eaofolheti­nesco de Nelson Rodrigues, por outro, perceberá a excepciona­lidade dessas crônicas.

Os casos, muitos deles dramáticos o bastante para o proveito sensaciona­lista, são contados não só com leveza mas também com uma linguagem avessa ao clichê (língua franca do sensaciona­lismo), à aridez judiciária e à “paisagem lunar”, nas palavras de Nelson Rodrigues, do jornalismo dominado pelos “idiotas da objetivida­de”.

Como os bonecos da peça sul-africana, a crônica é um gênero com um quê de brinquedo, por sua abertura formal e as liberdades que se permite —ainda mais visíveis quando a lemos em seu habitat, rodeada por notícias. Empregá-la como o faz Martins, tratando de histórias dessa natureza, a aproxima da fronteira das obras de arte. VICTOR HERINGER AUTOR Rui Cardoso Martins EDITORA Tinta da China Brasil QUANTO R$ 69 AVALIAÇÃO muito bom RICARDO ARAÚJO PEREIRA Excepciona­lmente hoje não é publicada a coluna

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