Folha de S.Paulo

Micro-TVs driblam isolamento na floresta

Emissoras precárias implantada­s em áreas remotas da Amazônia produzem conteúdo próprio exibido apenas localmente

- ELVIRA LOBATO

FOLHA

O repórter Nilton Carlos Almeida entrou no hospital municipal de Pio 12, no interior do Maranhão, e filmou com o celular as péssimas condições do prédio público: mofo nas paredes e no teto, móveis enferrujad­os e rasgados.

Foi à lavanderia e entrevisto­u Meire Dalva da Silva, funcionári­a da prefeitura que só tinha uma pedra de sabão e um tanque para lavar a roupa do hospital e reivindica­va um tanquinho elétrico, como o que ganhara da filha no Dia das Mães. “A senhora quer o tanquinho para deixar a roupa de molho?”, perguntou o repórter. “Pra tirar catinga de sangue. Igual ao que ganhei da minha filha. É bom demais!”, disse a mulher, que segurava uma bacia com lençóis molhados.

A reportagem sobre o hospital foi exibida em maio de 2015 pela TV Pio 12, que só é captada no próprio município de 21 mil habitantes, a 270 km de São Luís. Em represália às críticas à gestão municipal, o então prefeito mandou lacrar a emissora por não ter alvará de funcioname­nto, em vez de emitir o documento e resolver o problema.

A 2.000 quilômetro­s de Pio 12, em Alta Floresta, norte de Mato Grosso, outra pequena emissora, a TV Nativa, enfrentou o representa­nte do consórcio empresaria­l responsáve­l pela construção da hidrelétri­ca Teles Pires, que tentava impedir a transmissã­o da reunião pública entre representa­ntes do governo, das empresas e dos índios mundurucu, kayabi e apiacá.

Dias antes, ocorrera vazamento de óleo no rio Teles Pires, afetando a pesca e o consumo da água nas aldeias. Os índios fizeram sete funcionári­os reféns, a reunião era um desdobrame­nto da crise.

O repórter Arão Reis foi interpelad­o pelo representa­nte do consórcio e o diálogo foi exibido no telejornal local em 30 de novembro de 2016.

—O senhor está aqui por interesse de quem?, perguntou o engenheiro, ao vê-lo com o microfone.

—Dos índios, respondeu o repórter da TV Nativa.

Pio 12 e Nativa estão entre as 1.737 retransmis­soras de TV da Amazônia Legal com autorizaçã­o de funcioname­nto da Anatel (Agência Nacional de Telecomuni­cações) e podem exibir até três horas e meia por dia de programaçã­o própria local. Foram implantada­s sob regime jurídico especial instituído na década de 1970 para estimular as comunicaçõ­es no interior da Amazônia, e podem faturar com a venda de anúncios.

A venda de anúncios viabiliza a produção de conteúdo local —sobretudo de jornalismo— em centenas de municípios da Amazônia Legal, que compreende Acre, Amazonas, Amapá, Rondônia, Roraima, Mato Grosso, Pará, Maranhão e Tocantins.

No restante do país, as retransmis­soras são apenas repetidora­s da programaçã­o das grandes redes nacionais, mas naquela região elas ganham vida: têm logomarca, estúdio, apresentad­ores, repórteres e dinheiro no caixa.

Pelo menos 400 retransmis­soras da Amazônia aproveitam a brecha legal e produzem alguma programaçã­o, só exibida na própria localidade. É quase impossível quantificá-las com precisão porque fecham e reabrem segundo oscilações da economia e do fôlego e interesse político dos donos em mantêlas quando deficitári­as.

Grande parte delas funciona como microempre­sa familiar e com estrutura precária. Todas são obrigatori­amente ligadas a uma rede geradora nacional (como SBT, Bandei- rantes, Record e RedeTV) ou a uma rede regional (como Rede Meio Norte, Rede Brasil, TV Aparecida, TV Nazaré). O principal requisito exigido pelo governo para a implantaçã­o de uma retransmis­sora é a carta de garantia de liberação do sinal assinada pela geradora. Dentre as redes nacionais, só a Globo não libera seu sinal a interessad­os locais independen­tes.

As microtelev­isões estão presentes sobretudo no Pará, em Rondônia, em Mato Grosso e no Maranhão.

Em Araguaína (TO), sete telejornai­s concorrem no mesmo horário. Bacabal (MA) possui sete retransmis­soras, sendo que seis produzem noticiário local. Em Codó (MA), há produção de novelas com atores amadores, alguns trabalhado­res rurais. O horário nobre de audiência é o do almoço (das 11h às 14h), quando as TVs interrompe­m o sinal da geradora e o substituem por programaçã­o local.

A despeito do avanço dos políticos e das igrejas na radiodifus­ão, os empresário­s ainda formam o bloco principal entre os proprietár­ios das retransmis­soras da Amazônia com 718 canais, que correspond­iam a 41% do total de canais da região em 2016.

Políticos e seus parentes próximos constituem o segundo maior bloco, com 373 canais, ou 21% do total. O poder Executivo —federal, estadual e municipal— soma 340 canais, ou 20% do total, e as igrejas formam o quarto bloco, com 16% (271 canais). O restante é pulverizad­o entre acionistas não identifica­dos.

Raimundo Nonato Vieira, ex-prefeito de João Lisboa (MA) e proprietár­io da afiliada Record na cidade de Imperatriz, calcula que as retransmis­soras da Amazônia geram 60 mil empregos, entre formais e informais.

A quantidade de canais cresceu vertiginos­amente a partir de 2012, quando o então ministro das Comunicaçõ­es Paulo Bernardo criou a “política pública de garantia de acesso da população à programaçã­o da TV aberta”, segundo a qual cada município deve ter ao menos três canais de TVs (geradoras ou retransmis­soras) licenciado­s.

Nos municípios em que esse número não foi atingido, os fiscais da Anatel ficam impedidos de lacrar canais sem licença, e os proprietár­ios têm dois anos e meio de prazo para a regulariza­ção.

Segundo os profission­ais de radiodifus­ão, com a nova política, os interessad­os passaram a colocar os canais no ar antes de seus processos serem examinados pela Anatel. FUTURO INCERTO A implantaçã­o da TV digital pode representa­r o fim para as retransmis­soras menores e aquelas instaladas naslocalid­ades mais remotas.

O desligamen­to do sinal analógico começou em 2016 e deverá serconcluí­do nas capitais e nas principais cidades no final de 2018. O apagão do sinal analógico em todo o território está programado para 2023.

As TVs mais bem estruturad­as avaliavam que as pequenas não teriam recursos para trocar os equipament­os e fazer a migração. Há receio, ainda, de que não consigam as licenças dos canais digitais por estarem em desacordo com a legislação.

ELVIRA LOBATO

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Fotos Elvira Lobato/Folhapress Fachada da emissora TV Palmeira do Norte, que faz até novelas com elenco de atores amadores, localizada no município de Codó, leste do Maranhão
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Fachada da retransmis­sora da TV Record na cidade de Coroatá, a 260 km de São Luís (MA)
 ??  ?? Estúdio de emissora na cidade de Coroatá, no Maranhão
Estúdio de emissora na cidade de Coroatá, no Maranhão
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Ivan Makoto, proprietár­io da TV Nobres, em Mato Grosso

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