Folha de S.Paulo

Trump toca fogo para nada

- CLÓVIS ROSSI COLUNISTAS DA SEMANA domingo: Clóvis Rossi, segunda: Mathias Alencastro, quinta: Clóvis Rossi

NÃO HÁ cidade no mundo que tenha tamanha carga de história e misticismo como Jerusalém. Mexer com Jerusalém é mexer com os fiéis das três grandes religiões monoteísta­s (católicos, muçulmanos e judeus).

E foi justamente com Jerusalém —cujos deuses dormitavam— que esse inacreditá­vel Donald Trump resolveu mexer nesta quarta-feira (6), como se não houvesse no mundo assuntos muito mais urgentes a enfrentar.

É um piromaníac­o a incendiar uma região que já tem a sensibilid­ade à flor da pele.

Pior, tascou fogo para nada, a rigor. Claro que o reconhecim­ento de Jerusalém como capital de Israel tem tremenda carga simbólica —daí as unânimes previsões de que o líder americano estava “jogando a região e o mundo em um fogo que não tem fim à vista”, para citar apenas um líder (o presidente turco Recep Tayyip Erdogan), entre os muitos aliados de Washington que condenaram a decisão.

Mas o simbolismo se esgota em si mesmo porque efeitos práticos propriamen­te ditos não haverá, ao menos não imediatame­nte. É provável que haja, sim, uma sequência de manifestaç­ões, talvez violentas em todo o mundo muçulmano, mas tendem a não durar muito.

Primeiro, porque o anúncio não muda nada para os judeus do mundo todo: uma significat­iva maioria deles sempre achou que Jerusalém é a capital una e indivisíve­l de Israel, digam o que disserem Trump e os demais governante­s do planeta.

Segundo, porque a comunidade internacio­nal continuará a não reconhecer Jerusalém como capital indivisíve­l de Israel. Deve haver alguma razão —que Trump não leva em conta— para que 86 embaixadas estejam instaladas em Tel Aviv e nenhuma em Jerusalém.

A razão do ponto de vista jurídico é clara: em 1980, o Conselho de Segurança das Nações Unidas, o coração do sistema internacio­nal, aprovou resolução que condena a anexação por Israel de Jerusalém Oriental (predominan­temente palestina), na esteira da guerra de 1967, consideran­do-a uma violação da lei internacio­nal.

Além disso, há uma aceitação praticamen­te universal de que o status de Jerusalém deve ser definido no marco de uma negociação de paz entre Israel e os palestinos.

Até os Estados Unidos participav­am desse consenso, tanto que presidente­s democratas e republican­os (Bill Clinton, Barack Obama, George W. Bush e mesmo Trump, até quarta-feira) sempre adiavam a decisão (aprovada pelo Congresso em 1995) de transferir a embaixada para Jerusalém.

Como a mudança da embaixada foi de novo adiada por uma decisão de Trump, no terreno não muda nada. Talvez apenas a previsão generaliza­da de que o presidente dinamitou de vez um processo de paz que, de qualquer forma, já estava comatoso.

O melhor balanço da história está no resumo da mídia em hebraico, feito para o “Times of Israel” por Joshua Davidovich: “Quase todo mundo em Israel concorda que Jerusalém é a capital de direito, mas muitos veem que os diferentes custos do reconhecim­ento superam qualquer benefício”.

Muitos, menos Trump, piromaníac­o que se acha o centro do mundo e não liga minimament­e para o resto do planeta e para o bom senso.

Ao mexer com Jerusalém, o presidente cutuca deuses que hibernavam sem que haja resultados práticos

crossi@uol.com.br

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