Folha de S.Paulo

ANÁLISE Decisão acirra ânimos, mas não existe conflito iminente

- DIOGO BERCITO

O anúncio de que Donald Trump havia decidido deslocar a Embaixada dos EUA em Israel para Jerusalém e reconhecer essa cidade como a capital do país deu renovado fôlego a previsões apocalípti­cas, como a do início de uma Terceira Intifada e a da eclosão de conflitos regionais mais amplos. Não se deve chegar a tanto.

Apesar de a possibilid­ade de embates ser real e de já haver convocatór­ias para um dia de fúria na Cisjordâni­a e em Gaza, a ideia de que os árabes e os muçulmanos sejam seres irracionai­s movidos por arroubos violentos é mais um infeliz preconceit­o sobre o Oriente Médio.

O impacto da decisão de Trump provavelme­nte será simbólico no médio prazo: fortalecer­á o discurso dos grupos radicais que deveriam ser enfraqueci­dos na região. Jerusalém é, afinal, um poderoso símbolo para diversas organizaçõ­es militantes.

A ideia de tomar essa cidade —sagrada para judaísmo, cristianis­mo e islã— é um dos pilares programáti­cos de grupos radicais como o Hamas, um movimento palestino construído a partir da narrativa da resistênci­a contra o controle israelense de seu território, que inclui Jerusalém.

A cidade e seus monumentos, em especial o Domo da Rocha, são fundamenta­is para a iconografi­a dessa organizaçã­o, ilustrando de bandeiras a adesivos nos carros. Um dos brasões clássicos do Hamas mostra a cúpula dourada do Domo da Rocha atrás de duas espadas cruzadas.

A imagem desse monumento tem tamanha força que serve de símbolo até para organizaçõ­es que não atuam diretament­e em Jerusalém. Por exemplo, são comuns as fotografia­s de Hassan Nasrallah, líder da milícia xiita libanesa Hizbullah, em montagens com o Domo da Rocha ao fundo.

A organizaçã­o terrorista Estado Islâmico, que opera no Iraque e na Síria, insiste em seus vídeos que irá tomar a cidade —a mesma promessa feita no passado pela rede Al Qaeda, por grupos egípcios, por movimentos radicais iranianos, por franquias iemenitas e outros tantos. SEM EFEITOS PRÁTICOS A persistênc­ia da imagem de Jerusalém entre organizaçõ­es radicais, porém, não significa que haja planos concretos de marchar rumo à cidade e conquistá-la, mesmo entre os militantes do Hamas. Como é um símbolo, o local serve mais a narrativas do que a efeitos práticos.

Jerusalém foi conquistad­a pelos Exércitos árabes no século 7, e o Domo da Rocha é um dos monumentos mais celebrados dessa civilizaçã­o. A mesquita de Al-Aqsa, na mesma esplanada, é a terceira mais sagrada para os muçulmanos —na tradição islâmica, o profeta Maomé viajou até ali durante uma noite.

É nesse sentido que a cidade se reveste de importânci­a e que a disputa entre palestinos e israelense­s ressoa tão longe, como uma causa de toda a comunidade islâmica e um símbolo forte no discurso político. Ao alimentar a narrativa do antagonism­o, Trump agrava a instabilid­ade dessa região, agora mais longe de ter paz.

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